Bon appetit

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Sinceramente, tenho inveja de todos aqueles chefs que sabe manusear como ninguém uma faca laminada de pura prata, com o corte riscado a laser, capaz de fazer o salmão ao molho de maracujá se tornar mais saboroso ainda. Tenho inveja daqueles chefs que tem essa faca.

O corte, a macies da carne e o estalo bem fino do osso quando a gente pressiona um pouco mais para separar em fatias, vão por mim, faz uma puta diferença quando você pede seu kobo na lagosta. É como se, com essa faca, você fosse o garçom das carnes nobres em um rodízio.

Tem em sua espada um belo exemplar da raça Angus, e bem naquela parte acima da caixa torácica, você tira de lá, num corte, o que chamamos de Prime Rib. Na parte central dessa divindade, lá na lombar, com essa faca, daríamos o corte T-Bone. Picanha. Filé Mignom.

Você seria esse cara do rodízio, sendo chamado a todo o momento. Chefe. Jamais ninguém te chamaria apenas para fazer o sinal da conta. Você seria essa pessoa se levasse o coxão duro, moela, joelho.

Tudo o que eu queria nesse jantar de gala era uma faca laminada e banhada a prata, de vinte e sete centímetros, com o corte riscado a laser. Facilitaria muito a minha vida e dos meus cinco ajudantes.

Porque, mesmo podres de ricas, essas pessoas não entendem nada de comida.

Uma das primeiras coisas que elas acham que as diferenciam da casta é o paladar. Besteira. Esses putos não conseguiriam saciar nenhuma suculência se não entupissem de açúcar ou sal o que quer que fosse.

Aprendam uma coisa quando seu nome rodear por toda comunidade milionária como um chef popstar, sendo chamado por todos. Não pela habilidade culinária, mas por ter protagonizado, nos últimos catorze meses, uma fama meteórica que não vem ao caso.

O que você tem que aprender é que, quanto mais dinheiro se tem, mais isolado a pessoa prefere ficar. São todos Smeagols atrás dos seus preciosos anéis. Já cozinhei para tanta gente endinheirada que você jamais imaginaria. É tanto dinheiro que essas pessoas são invisíveis. Elas moram no mesmo estado que você, mas sequer imagina o lugar de onde elas vêm. Como se existisse um mundo paralelo propício para suas mesquinharias.

A cozinha onde estou é muito diferente do resto da mansão. Assim como o porão e o sótão. Ninguém leva convidados para se exibir no porão e no sótão. Pelo visto, nesse caso, os donos não levam a cozinha a sério. Talvez prefiram esfregar o dinheiro na cara das visitas nos restaurantes luxuosos.

Odeio isso.

Mas o que me deixa mais puto é não ter comigo meus materiais de trabalho. Garfos, facas, colheres, espátulas.

Droga.

Confundi as malditas malas antes de vir pra cá. Por isso fico cada vez mais puto com aquela cozinha, com a minha equipe, com os donos, com seus filhos mimados, com seus quatro cães, com seus dois gatos e com o cento e cinquenta convidados para esse castelo.

- Nos surpreendam. Espero do melhor chef de toda costa oeste, famoso por todas as mansões a castelos da classe, um menu de entradas, pratos principais, acompanhamentos, sobremesas e bebidas totalmente inesperado e, porque não dizer, especial?

Sim, eles falavam de uma maneira teatral. O marido segurava pelas lapelas e a mulher gesticulava com os braços sempre que afirmavam e reafirmavam para que eu pudesse surpreender a mansão com seus 150 convidados.

Será uma honra, eu digo.

Um banquete formidável, eu digo fazendo uma reverência.

Daqueles que seus paladares serão saciados como se fosse a última vez, falo enquanto levo meu toque blanche do peito para a minha cabeça.

Todos os ajudantes correm de um lado para o outro, como naqueles desenhos animados musicais, com alguma ópera de Beethoven, Vivaldi ou Bá ao fundo. Cuspo ordens, aponto dedos e ranjo meus dentes a cada comando. Tenho duas horas para entregar aos almofadinhas algo inesquecível.

Grito, tirem as crianças da cozinha.

Berro, tirem os cachorros da sala.

Digo, caprichem no fugu. Falo, se comprometam com o feshik. Ordeno para não tirarem as sementes de damasco.

Sei que não vem ao caso, mas o boom da minha popularidade não veio por conta de ter vencido algum reality show culinário, onde a gente serve de cobaia para outros chefs gritarem suas frustrações conosco. Meus pratos são peças raras, receitas ancestrais aperfeiçoadas por cada tribo e geração que povoou esse mundo

Isso porque o fugu é um peixe que contém tetrodoxina, causando paralisia muscular dos órgãos respiratórios. O feshik pode ter vestígios de uma bactéria chamada Clostridium botulinium, que bloqueia a liberação de acetilcolina, levando a paralisia flácida. As sementes de damasco possuem glicosídeos cianogênicos e podem levar a paralisia muscular e respiratória.

Sei, como ninguém, a tratar um fugu ou a secar por um ano o feshik antes de levar à mesa ou em como nunca se deve comer sementes de damasco. Também sei que o feijão-vermelho tem que ser fervido no mínimo por dez minutos. Assim como higienizar ao máximo a mandioca, retirando todo o cianureto de hidrogênio antes de servir para alguém.

Quando falo pra distribuírem porções de castanhas-de-caju crua, é porque sei que ela contém urushiol, podendo ser fatal a quem comer. Convenço a todos comerem o cazu marzu, mesmo todos sabendo que esse queijo só pode ser servido com moscas e larvas que perfurarão o intestino grosso.

A minha popularidade não está atrelada a nenhuma mídia. Muito menos a quem cozinho. Meus dotes culinários são apreciados por quem me contrata para cozinhar para alguém sem deixar nenhum rastro que qualquer pessoa, em meu lugar, lutaria para evitar não ser descoberto.

Ainda mais se você for um especulador da bolsa de valores ou de qualquer mercado financeiro. Caso necessite queimar arquivo por conta de uma rede complexa de corrupção. Talvez até mesmo por uma vingança nos tempos de escola.

Por isso, quando notar que os convidados estão com algum espasmo muscular, sintomas de paralisia, dificuldade em respiração, batimento cardíaco acelerado, mãos apertando a garganta para evitar que o último grão seja digerido, saiba que será tarde demais.

Mise em place. Usamos esse termo para colocar as coisas em ordem antes de começar o serviço. Fico extremamente puto da vida por ter esquecido aquela minha faca preferida, que condicionaria os mais belos cortes para todos aqueles barões e baronesas que berram pra dentro por terem as vias respiratórias bloqueadas.

Ofereceria a todas as pessoas daqueles imensos cômodos, que estão sufocadas, como peixes morrendo pela boca, os mais precisos cortes à julienne, com cada tira exatamente com três milímetros por três milímetros. Minhas lâminas proporcionaria um corte à chiffonade para todas as saladas desse banquete.

Enquanto meus ajudantes correm de um lado para o outro, limpando toda aquela cozinha desrespeitosa, tudo que tenho a oferecer a esses pobres podres de ricos e especuladores, traficantes de drogas, de influência, praticantes de messianato, são as minhas mais sinceras desculpas quanto aos cortes irregulares.

Prometi ao irmão da baronesa dessa mansão que proporcionaria a melhor refeição que vocês jamais teriam a chance de provar de novo.

Sem mais a acrescentar, itadakimasu, termo japonês que significa bon appetit em francês, que significa bom apetite.

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