Prefácio

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Outras anotações sobre Edgar Allan Poe

I

Literatura da decadência! – Palavras sem sentido que frequentemente ouvimos cair, com o som enfático de um bocejo, da boca daquelas esfinges sem segredo que velam às santas  portas  da  Estética  clássica. Toda  vez que o oráculo irrefutável ressoa, pode-se afirmar que se trata de uma obra mais interessante que a Ilíada. É o caso, evidentemente, de um poema  ou de um romance no qual todas as  partes  são dispostas  habilmente em prol da surpresa, no qual o estilo é ornado magnificamente, no qual todos os recursos da linguagem e da prosódia são utilizados por uma mão impecável. Quando ouço ecoar o anátema – que, seja dito de passagem, geralmente cai sobre algum poeta célebre – sou sempre tomado  pela  vontade  de responder: “Acaso vocês  me tomam  por  alguém  tão bárbaro quanto vocês, e creem que eu seja capaz de me divertir de forma tão sofrível?” Comparações grotescas então se põem em funcionamento no meu cérebro; parece que fui apresentado a duas mulheres: uma matrona grosseira, repugnante do ponto de vista da saúde e da moral, sem postura, em suma, sem dever nada, a não ser à pura natureza; a outra, uma daquelas belezas que dominam e oprimem a lembrança, unindo a eloquência de sua elegância ao seu charme profundo e original, senhora de si, consciente e rainha da própria pessoa – uma voz que soa como se um instrumento bem afinado estivesse falando, e olhares que não transmitem  senão  o  que  querem. Minha escolha não poderia ser mais simples; no entanto, há esfinges pedagógicas que me repreenderiam por faltar à honra clássica. Mas, para deixar as parábolas de lado, acredito que posso perguntar a esses homens sábios se eles entendem toda a vaidade, toda a inutilidade de sua sabedoria. Dizer literatura da decadência implica a existência de uma escala de literaturas, uma recém-nascida, outra pueril, uma adolescente, etc. Esse termo, quero dizer, pressupõe algo de fatal e de providencial, como um decreto inevitável; e é extremamente injusto nos criticarem por  cumprir  a lei misteriosa. Tudo o que consigo entender do discurso acadêmico é ser vergonhoso obedecer a essa lei de bom grado e sermos culpados por nos regozijarmos com nosso destino. Esse sol que, há poucas horas, dominava tudo com luz direta e branca, em breve irá encharcar o horizonte ocidental com várias cores. Nos jogos desse sol agonizante, certos espíritos poéticos encontrarão novos prazeres; eles descobrirão uma fileira de colunas deslumbrantes, cascatas de metal fundido, galerias de fogo, um esplendor triste, a volúpia da saudade, todos os encantos do sonho,  todas  as lembranças do ópio. E o pôr do sol lhes parecerá de fato  como  a maravilhosa alegoria de uma alma carregada de vida que vai para trás do horizonte com uma enorme provisão de pensamentos e sonhos.

  Mas o que os professores não pensaram é que, no movimento da vida, tal complicação, tal combinação pode se apresentar completamente inesperada por sua sabedoria escolar. Então sua língua minguada se encontra em falta, como no caso – fenômeno que se multiplicará com prováveis variantes – no qual uma nação começa pela decadência e estreia onde  as  outras  terminam.
  Que entre as imensas colônias do presente século se façam novas literaturas produzirá, sem dúvida alguma, acidentes espirituais de uma natureza desconcertante para o espírito da escola. Jovem e  velha  ao mesmo tempo, a América fala pelos cotovelos e caduca com uma volubilidade espantosa. Quem seria capaz de contar seus poetas? São inumeráveis. Suas bluestockings? Elas enchem os jornais. Seus críticos? Acredite, a América possui pedantes como os  nossos  para chamar o artista o tempo todo de volta à beleza antiga, para questionar um poeta ou romancista sobre a moralidade do seu objetivo e a qualidade das suas intenções. O que é comum aqui é ainda mais comum lá, literaturas que não sabem sequer a ortografia; uma atividade pueril inútil; um sem-número de compiladores; gente que se repete o tempo todo; plagiários de plágios e críticos de críticos. Nesse caldeirão de mediocridades, nesse mundo que adora aperfeiçoamentos materiais – escândalo de um gênero novo que permite compreender a grandeza dos povos preguiçosos –, nessa sociedade ávida por assombramento, apaixonada pela vida, mas, sobretudo, por uma vida cheia de excitações, um homem foi grande não apenas por sua sutileza metafísica, pela beleza sinistra ou encantadora do  que  concebeu, pelo rigor de suas análises, mas também  foi  grande  como caricatura. É preciso que eu me explique com alguma inquietação, pois recentemente um crítico imprudente se servia, para denegrir Edgar Poe e contestar a sinceridade da minha admiração, da palavra malabarista, que eu mesmo havia empregado quase como um elogio ao nobre poeta.
  Do seio de um mundo esfomeado por materialidades, Poe se jogou no sonho. Sufocado como estava pela atmosfera americana, escreveu na dedicatória de Eureka: “Ofereço este livro àqueles que puseram fé no sonho como única realidade!” Foi, portanto, um protesto admirável, que ele fez à sua maneira, in his own way. O autor que, n'O colóquio de Monos e Una, deixa abundante o desprezo e o desgosto pela democracia, pelo progresso e pela civilização é o mesmo autor que, para capturar a  credulidade  e satisfazer a curiosidade dos seus, reconheceu com mais vigor a soberania humana e fabricou com mais engenho os factoides mais lisonjeiros  ao orgulho do homem moderno. Hoje, Poe me parece um hilota que pretende fazer seu mestre corar. Por fim, afirmando minhas ideias de modo  ainda mais claro, Poe foi sempre grande, não apenas  pelas  concepções  nobres, mas também pelas farsas.

Contos de imaginação e mistério - Edgar Allan PoeOnde histórias criam vida. Descubra agora