Capítulo 2.

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Por algum tempo não fui capaz de encontrar um motivo para me mover. O horror de estar presa com um demônio saído de pesadelos entorpecia meus sentidos e tudo piorava ao imaginar um possível confronto com ele caso eu tentasse fugir.

No fim, não foi a coragem ou o medo que me impediram de definhar até a morte, mas as lembranças de minha avó — e de Mei.

Minha família se mudou do Oeste do estado para a capital na tentativa de tratar do câncer que acabou levando minha mãe meses depois, quando eu tinha cinco anos, e meu irmão, onze. Após o luto, meu pai voltou para nossa antiga cidade a trabalho, mas minha avó decidiu ficar. Nosso pai nos visitava periodicamente, mas foi vovó quem assumiu a maior parte da nossa criação.

Também foi ela quem me deu Mei, há cinco anos atrás, que virou a minha mais fiel companheira. Meu irmão já não morava conosco há bastante tempo, o que significava que as duas provavelmente estavam sozinhas e vulneráveis diante do apocalipse.

Agarrar-me à esperança de revê-las foi como consegui sufocar o pavor que me incapacitava. Arrisquei uma nova olhada naquele tormento, ciente que ou eu encontraria uma forma de sobreviver agora ou cederia meu último resquício de sanidade para este espetáculo de horror.

Abaixei o meu corpo, aproximando com cuidado a cabeça do vão entre a porta do banheiro e o chão gelado, quase insuficiente para permitir a visão. Evitei encostar a cabeça na porta, temendo produzir qualquer ruído.

Eu sabia que continuava despercebida por ter me mantido em silêncio — este também era o motivo para eu ainda estar viva. Era impossível deduzir qual o grau de audição daquelas coisas, mas o menor estalo que meu corpo produzia já enviava uma onda de gelo por toda a minha espinha.

Por baixo da porta, fui capaz de enxergar um par de tênis pretos logo à frente. As canelas de quem os calçava eram brancas, maculadas por fios de sangue que desciam até se perderem no algodão branco das meias. Uma poça de baba e sangue se formava ao seu lado, com uma espessa espuma branca nas bordas. Aquilo que outrora fora uma estudante estava completamente imóvel. Eu não sabia se a coisa fitava algo, ou sequer se era capaz de prender a sua atenção em alguma coisa. Fosse como fosse, aquilo parecia estar completamente imóvel, de costas para mim.

Ousei perguntar-me por que parara de comer a sua amiga, mas pensar nisso quase me fez ficar maluca.

Ainda com cuidado, ergui-me até ficar em pé. Eu tinha um plano, por mais simplório que fosse, mas precisava ser cuidadosa para não denunciar minha presença, pois eu não sabia se teria forças para continuar caso a criatura viesse rosnando atrás de mim.

Subi no tanque com cuidado, uma perna de cada vez, ciente de cada estalo que a porcelana fazia sob meu peso. Espalmei as mãos nos ladrilhos da parede, tentando deixar a maior parte do peso apoiado somente nelas. Cada movimento milimétrico que eu fazia me permitia sentir a instabilidade do tanque. Todo o meu corpo — as minhas axilas, principalmente — ficaram úmidos conforme o meu nervosismo aumentava.

Com cautela, ergui-me até ficar completamente ereta e ver por sobre a porta de madeira que Sarah realmente estava de costas para mim, fitando a pequena janelinha no alto da parede. Parecia estar perdidamente distraída, o som que vinha do lado de fora (gritos) mantendo-a interessada. Não conseguia ver seu rosto e agradeci por não ter de encarar novamente aqueles olhos vermelhos injetados.

Observei os arredores e precisei de muita força para resistir ao súbito ímpeto de desistir: próximo a porta, o corpo sem vida com o rosto mutilado estava estirado no chão. Era inevitável olhar: de seu rosto dilacerado escorria sangue, e uma poça se formava ao redor do cadáver. Estava tão próximo à porta que seria difícil abrir mais que uma fresta.

Em DecomposiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora