Ao acordar e sentir o calor da mão de Melissa em contato com a minha, demorei alguns segundos para lembrar o motivo pelo qual a menina de cabelos loiros tinha dividido a cama comigo naquela noite.
Conforme fui vencendo o torpor do sono, lembranças das conversas que compartilhamos na noite anterior invadiram a minha mente. Era confortável saber que ainda era possível me sentir uma adolescente normal, com borboletas no estômago e amigas com quem compartilhar fofocas, em meio a uma eterna luta pela sobrevivência.
A lembrança que naquele dia voltaríamos para a incerteza das ruas, trouxe-me uma careta de desânimo.
Tentei acordar Melissa com cuidado, mas ao menor movimento, Mei ergueu as orelhas e abriu os olhos. No segundo seguinte, estava na cama, pulando sobre nós e espalhando lambidas meladas de baba. Melissa teve que afundar o rosto nos pelos de Mei para segurar um riso alto.
Senti a brisa da manhã invadir o quarto, com a certeza de que, independente do frio que fazia, próximo ao meio dia estaríamos quase em 30 graus. Eu havia deixado a janela aberta para arejar, agora que o ar-condicionado não funcionava mais, mas a ideia de que alguma criatura poderia se esgueirar no meio da madrugada fez um calafrio passar pelo meu corpo. Eu ainda cometia tantos erros ingênuos que era uma surpresa estar viva até agora.
Olhei pela janela e algo captou a minha atenção, despertando-me o desespero. Atirei o lençol para o lado, levantando-me da cama e Mei parou com as brincadeiras, erguendo as orelhas e me acompanhando com a cabeça.
Apoiados nas grades de ferro do meu portão, duas criaturas esticavam seus braços nojentos por entre as barras, como se quisessem alcançar algo dentro do terreno. Para a minha surpresa, aquela visão foi capaz de me fazer sentir somente ódio daqueles monstros. Eu não fazia ideia do que chamara sua atenção na parte de dentro, com todo o cuidado que tomávamos para não sermos notados e, ainda assim, lá estavam eles, aquele lembrete eterno de que a morte estava sempre a espreita.
— Ainda bem que estamos de saída hoje — Melissa murmurou, da cama, observando as minhas reações. Tentei sorrir em resposta, mas sem sucesso. — É melhor irmos nos arrumar logo.
Assenti para ela e começamos a nos vestir com as roupas que usaríamos pelos próximos dias. Por mais estranho que pudesse parecer, planejamos em grupo até o que vestiríamos. Ninguém tinha certeza sobre o quão efetivo seria, mas a nossa experiência até então nos levou a crer que aquelas criaturas, por mais que insensíveis à dor e ao cansaço, ainda mantinham a maioria das características físicas de um humano. O que significava que, por mais mortais que fossem, seus dentes e unhas eram como os de um humano não-transformado. Imaginamos que o melhor a se fazer era cobrir ao máximo o corpo com peças que oferecessem resistência.
Nenhum de nós pretendia levar uma mordida, mas qualquer coisa que nos desse um pingo a mais de segurança tornava válido o investimento.
Dessa forma, mesmo com o calor iminente, vesti minha jaqueta de couro. Durante os nossos saques recentes, também buscamos por algumas peças de roupas, dispondo agora de uma variedade um pouco maior, mas que nem metade poderia seguir caminho conosco. De qualquer forma, todos tínhamos jeans para usar, tênis mais adequados (ou, no meu caso e de Carlos, coturnos) e jaquetas de couro, ou pelo menos outras minimamente grossas para oferecer proteção.
Infelizmente, Mei odiava usar roupas ou acessórios, então redobraria a minha atenção para mantê-la longe de perigo. Eu tinha plena confiança no seu treinamento. Sabia que, apesar de brincalhona e carinhosa, ela era um cachorro inteligente. Na verdade, imaginava que os animais já tinham uma noção do perigo que aquelas criaturas poderiam significar, tendo instintos tão mais aguçados do que nós humanos. Ainda assim, uma sensação de desconforto me atingiu ao imaginar um cachorro correndo na direção de seu dono transformado em morto-vivo, ainda com plena confiança nele. Durante todo o nosso trajeto, não vimos cães ou gatos, coisa muito comum antes. Alguns pássaros ainda cantavam e, de noite, ouvíamos grilos, mas a própria natureza parecia estar estranhamente quieta.
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Em Decomposição
Horror🏆 VENCEDOR DO WATTYS 2020! 🏆 LIVRO 1. Rebeca tinha 17 anos quando viu pela janela de seu colégio a chegada do apocalipse. Viver se torna um inferno mortal e a sociedade caminha para o colapso num vale tudo pela sobrevivência. Ela precisará atrave...