Capítulo 33.

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Guilherme me passou uma vasilha de cerâmica fumegante e cheirosa, e só então percebi o tamanho da fome que eu sentia.

Melissa encontrou alguns saquinhos de sopa na casa e os cozinhou com macarrão para jantarmos. Com um pacote de torradas cheio, aquela era a refeição mais completa que comíamos há dias. Provavelmente os antigos moradores não tinham cães, pois não havia nenhum saco de ração, mas Mei não pareceu se importar em comer a mesma comida, com um adicional generoso de torradas.

Duas velas iluminavam a sala de estar pequena onde nos reuníamos, em volta de uma mesinha baixa de centro. Achamos uma lanterna pequena na gaveta da cozinha, mas havia somente as pilhas que já estavam encaixadas nela, por isso preferimos não gastar.

Eu e Melissa estávamos cobertas, tentando nos proteger das rajadas de vento que passavam pelas frestas das janelas. Eu não lembrava em que momento havia pegado o meu cobertor e imaginava que havia sido Guilherme quem o colocou sobre mim, durante os minutos que eu permaneci um pouco zonza depois da nossa chegada.

A sensação de calor que invadiu o meu corpo com a primeira colherada de sopa foi bem-vinda. Àquela altura, eu conseguia me sentir melhor, as coisas que aconteceram durante o dia parecendo cada vez mais distantes. Naquela noite não ouvíamos os sons tão frequentes de rosnados e gemidos, pois agora estes eram soterrados pelo rugido da chuva torrencial que espancava o chão. Os ventos faziam toda a madeira velha do forro da casa gemer em agonia, além de balançarem as chamas das velas com os insistentes sopros que passavam pelas frestas das janelas e portas que mantivemos fechadas.

Comi outra colherada de sopa, tentando prolongar o calor. Ainda estávamos em abril, pelo que eu imaginava, mas o frio daquela noite era cortante. A comida estava ótima, mas sinceramente qualquer coisa que eu pudesse colocar na boca seria meu prato favorito naquele momento.

Concentrei-me em mastigar 50 vezes cada torrada para evitar pensar nas quatro pessoas que faltavam naquela sala.

Ainda assim, era inevitável, as últimas imagens que eu visualizei se repetindo em loop na minha mente: Victória e Alana, de mãos dadas, afastando-se dos zumbis em completo terror, os olhos de Hector fixos nos meus, seu desespero praticamente palpável... eu nem sequer havia visto Carlos. Depois de tudo que aconteceu, parecia surpreendente que meu coração pudesse bater pelo medo de ter perdido todos, inclusive ele. Apesar de tudo, eu não conseguiria desejar a morte de ninguém.

A sala estaria mergulhada em um silêncio sepulcral, não fosse o constante incômodo da chuva. Nenhum de nós conversava, todos absortos na tarefa de terminar o nosso jantar, no máximo embalados pelo som ruidoso que Mei fazia ao mastigar sua parte da janta. Talvez estivéssemos com medo do que poderia sair se abríssemos nossas bocas.

— G-gente eu... Posso dormir com vocês hoje? — A voz fraquinha de Melissa quase não foi o suficiente para fazer-se ouvir acima da chuva catastrófica. Ela ergueu seus olhos úmidos, olhando para nenhum de nós em especial. — Eu realmente não queria ficar sozinha.

Olhei para Guilherme por impulso, que também já estava com os olhos nos meus, um pouco arregalados. Em sentimentos tão conflitantes com os quais eu já sentia, percebi que o meu rosto esquentava um pouco. Vi, sob a luz fraca das velas, que Guilherme ficara notavelmente corado. Ele não fazia ideia que Melissa já sabia o que acontecera naquela noite.

Haviam dois quartos na casa, uma suíte principal com cama de casal e outro com duas camas de solteiro. Ninguém tinha propriamente decidido onde iria dormir. Para falar a verdade, eu achava que estava implícito que ficaríamos todos no mesmo quarto.

Fui dominada por um misto de sentimentos, alguns bons, e outros beirando o ultraje por sentir qualquer coisa boa naquele momento. Parecia uma realidade completamente distorcida: havíamos nos beijado, claro, mas somente uma vez (várias, na verdade, mas somente em um dia, este era meu ponto). Era tão diferente da vida com a qual eu estava acostumada, imaginar que somente essa proximidade já seria o suficiente para que realmente fossemos considerados... qualquer coisa que não dois adolescentes se beijando.

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