Capítulo 49.

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Havia algo tranquilizador em poder passear novamente pelas ruas sem ter medo de morrer a cada esquina — mesmo que por "ruas" eu quisesse dizer os poucos metros asfaltados que dividiam as quadras do condomínio.

Ainda que as nuvens escuras se formando no horizonte anunciassem que aquela seria uma noite tempestuosa, durante a tarde, os raios de sol aqueceram minha pele. A grama não era exatamente verde e viva, mas a aparência das casas (quase) intocadas pelo apocalipse era nostálgica. Tudo parecia perfeito na medida do possível.

Foram dois dias de trabalho até ali, afinal. A pior parte foi limpar os corpos, com seus cheiros nefastos que quase tornavam insuportável o trabalho de carregá-los, mesmo que tenhamos enrolado-os com lençóis ou sacos de lixo. Nenhum de nós nunca havia carregado uma dessas coisas por muito tempo (no máximo, arrastar para fora do caminho), mas agora o cenário era outro: um local que poderíamos limpar e chamar de "casa". Levamos todos os cadáveres para o lado de fora, empilhando-os a alguns metros do muro do condomínio. Queimá-los seria uma boa ideia, para evitar que animais ou que outros deles fossem atraídos pela pilha de corpos fedorentos, mas faríamos aquilo outro dia.

Como se esta tarefa por si só já não ocupasse tempo e esforço, também havia outras coisas a fazer para tornar aquele lugar menos "apocalíptico". Vidros quebrados, telhas caídas e galhos arrancados de árvores (por obra do vento ou possíveis tempestades, presumimos) foram retirados do caminho; esvaziamos a piscina de água suja; limpamos os infinitos rastros de sangue e luta que se espalhavam pelo lugar. Eu não saberia dizer se eram coisas realmente importantes para a nossa existência ali, ou fazíamos pelo simples prazer que a visão de um lugar "normal" nos dava.

Também guardamos e fizemos uma relação de todos os mantimentos que conseguimos, dividindo as comidas entre as casas, mesmo que o planejamento ainda fosse fazer as refeições juntos. Tom e Carol, com a ajuda de Samuel e Guilherme, começaram a preparar a terra de dois terrenos onde não havia nenhuma construção para fazerem uma horta. Carolina trouxe sementes e mudas de sua antiga casa. A presença de um limoeiro no terreno da nova residência do casal, que nos rendeu algumas jarras de suco fresco, era uma lembrança agradável de como comidas não-perecíveis faziam falta.

Meus deleites sobre suco de limão foram interrompidos por duas loiras na porta do casarão principal. Melissa e Carol acenavam energicamente para que eu entrasse logo. Tranquei o riso, fazendo um sinal para chamar Tom e Guilherme, antes de começar a correr em direção à casa.

Com o trabalho diário, as conversas cada vez mais frequentes, os laços que formamos... O clima lentamente melhorava e superávamos novamente um luto. É natural: não há nada que o tempo não seja capaz de curar.

Hector me pediu para não contar a ninguém sobre seu aniversário Era algo que normalmente deveria ser associado a um clima festivo, e não ao luto melancólico que só então começávamos a superar. Mas eu tinha outra opinião: aquilo era exatamente o que precisávamos para poder virar a página. Um sentimento bom, uma lembrança da felicidade. Exatamente por isso que eu fizera questão de não somente contar para todos, mas de planejar uma surpresa.

Infelizmente, naquele mundo não havia mais câmeras, mas eu teria tido prazer em recordar o rosto perplexo de Hector, ainda com os cabelos pingando após o banho, tentando colocar o óculos o mais rápido o possível para entender o que acontecia na sala de estar.

Como não tínhamos ovos ou leite para fazer um bolo, Carol e Melissa aproveitaram os limões frescos com um mousse, servido em uma travessa de cristal que talvez custava mais caro que o meu antigo celular. Encontramos uma vela usada de "1" nas gavetas, que em outros tempos devia ter comemorado o aniversário de um filho dos antigos moradores, mas agora posava ao lado de um "6" feito em papelão e pintado de azul com esmalte. Ver aquele 16 foi o suficiente para me arrancar um sorriso bobo: era loucura lembrar que Hector era a pessoa mais nova entre nós (agora que Ana e Helena não estavam mais presentes), e que no começo de tudo, nem mesmo estávamos no mesmo ano do colégio.

Em DecomposiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora