– Em outros tempos, lhe custaria duas moedas – dizia o tal Caronte em sua voz profunda.
– Tá, mas moeda de quanto? – perguntou Melissa ainda atordoada, enfiando a mão na bolsa.
– Qualquer uma.
Melissa ficou feliz com a resposta, mas lamentou ter apenas moedas de um real. Deu uma ao motorista e passou pela catraca.
A porta do ônibus finalmente se fechou e a menina entendeu que não havia mais volta. O veículo começou a se mover.
Pela janela, olhou para a garota silenciosa que continuava imóvel na calçada, debaixo da chuva. Agora fazia sentido – ela também estava morta. Mas por que não subira no ônibus?
– E aquela menina?
– Ah, nós do mundo de cá chamamos ela de "a garota que espera" – respondeu o motorista. – Ela está aí esperando alguém há uns dez anos. Quando eu passei por ela pela primeira vez, expliquei que ela tava mortinha da silva, porque é isso o que sempre tenho que fazer nesse trabalho... eu juro pelas deusas que um dia vou exigir aumento no meu salário por isso... enfim, ela não quis subir no busão. Disse que estava esperando alguém. E continua esperando até hoje.
– Esperando quem?
– Ninguém sabe. E não há mais o que fazer. Duvido que a consciência dela continue intacta. A cada dia que mortos passam vagando no mundo dos vivos, perde-se um pouco dos pensamentos, lembranças. Provavelmente ela hoje é apenas parte do cenário. Incapaz de perceber coisas ao seu redor, interagir, sentir. Apenas existe aí.
Melissa olhou para o motorista pelo retrovisor, confusa.
– Acontece, docinho – disse ele. – Agora senta ali que a viagem é meio longa e pode ser perigosa.
Tentando se acostumar com a situação, Melissa se virou para o corredor do ônibus, que parecia bastante comum, exceto pela iluminação interna que piscava com certa frequência. Os bancos eram amarelos com estofado azul-escuro e o piso de aço estava bem sujo. Não era nada parecido com o que Melissa imaginaria de um trasporte do mundo dos mortos. Em YuYu Hakushô, o espírito da morte voava em cima de um remo. O Caronte também deveria usar um remo. Dentro de um barco. E não dirigir um ônibus.
Os outros passageiros a mediam de cima a baixo como se ela fosse a única fantasma ali. Sentou-se em um banco quase no fundo do ônibus, ao lado da janela, feliz por ocupar um lugar sem ninguém ao seu lado.
Olhou pela janela. Os eventuais relâmpagos eram a única luz que lhe permitia enxergar alguma coisa lá fora, o que significava que faltara energia. A chuva castigava a cidade como se tivesse raiva dela e a rua estava alagada. Os pneus do ônibus jogavam água para os lados.
Os passageiros voltaram às suas introspecções; alguns cabisbaixos, outros segurando a cabeça entre as mãos, apoiando-se no encosto do banco da frente. A maioria parecia desolada ou arrependida de algo. Outros, simplesmente conversavam com seus companheiros.
Em um banco mais à frente, do lado oposto onde Melissa se sentava, uma garota a encarava. Tinha olhos grandes e curiosos, pele marrom e cabelos cacheados com pontas pintadas de roxo. Vestia uma blusinha preta que deixava a barriga à mostra, saia rodada curta, meia arrastão e os brincos extravagantes brilhavam nas orelhas. O batom preto e o delineado de gatinho completavam o visual gótico.
Mais à frente, um casal discutia em voz mais alta que o necessário. Em outro canto, uma garota cutucava a janela com a ponta de um soco inglês. Um rapaz com fone de ouvido pendurado no pescoço olhava para ela, um pouco assustado – ou admirado.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Morte, o Intervalo da Vida
Ficção AdolescenteMelissa não tinha muitas perspectivas na vida. Nem na morte. Após perder sua melhor amiga em um acidente misterioso, carregou a culpa por ter dito aquelas últimas palavras. Uma doença cardíaca trouxe, então, a morte súbita que encerrou a breve est...