O ronco de um motor quebrou o silêncio. Não o motor do ônibus. Era um outro, curto, que morria e voltava a rugir duas, três, quatro vezes, até se tornar um barulho contínuo. Lâmpadas se acenderam no posto e na loja de conveniências.
– E fez-se a luz. – disse o "tubarão velho" entrando na loja, seguido por Melissa e Bruno – Às vezes esqueço que vocês, humanos, gostam de lâmpadas acesas. É sorte esse gerador velho ainda funcionar.
Cristiane pulou de susto com a voz do sujeito enquanto tentava enfiar algumas caixas de cigarro no bolso.
– Vinte reais. – disse o homem, apontando para ela. Ele era enorme e tinha jeito de poucos amigos. Mesmo que tentasse ser cordial, acabava intimidando as pessoas só de olhar para elas.
– Acho que morri meio de bolsos vazios – respondeu a moça forçando um sorriso.
– Eu não – intrometeu-se Marcos, depositando uma nota de vinte no balcão.
– Isso ainda vai matar vocês – Melissa riu sozinha da própria piada.
– Cara, você é tão ruim com piadas que faria sucesso num stand-up – disse Sofia com um sorriso compassivo.
– Engraçadinha. Bem, já que agora temos luz vou dar uma olhada lá fora – disse Melissa dando um tapinha no ombro de Bruno, que observava Marcos e Cristiane dividirem os cigarros.
Do lado de fora, Melissa suspirou. Estava finalmente sozinha. Os demais passageiros do ônibus estavam afastados, cada um com seus próprios pensamentos. Só agora, olhando seu próprio reflexo no para-brisa do ônibus, a menina percebia que ainda estava descalça. O par de tênis All Star estava dentro de sua bolsa a tiracolo, mas não sentia vontade de calçá-los.
Lembrou-se então do celular, que também estava na bolsa. Será que conseguiria telefonar para sua mãe? Como não pensara nisso antes? Tudo bem, era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. A morte, assim como a vida, não era uma experiência muito intuitiva.
Ligou a tela e o aparelho estava com sinal. Abriu o aplicativo de telefone, buscou a palavra "mãe", mas logo desistiu da ideia. Será que os vivos poderiam ouvir fantasmas através do telefone? E o que ela diria? "Oi mãe, não se preocupa não, tá? Morri mas passo bem. Anota o endereço onde meu corpo tá jogado na rua e manda me buscarem antes que um carro passe por cima e estrague o velório".
Ficou pensando se estava mesmo segurando um celular de verdade. Talvez fosse apenas uma projeção fantasmagórica do aparelho e o verdadeiro ainda estivesse junto ao seu corpo. Assim como as roupas, o sapato, a bolsa. A Melissa fantasma estava com todas as coisas que tinha quando morreu, mas os objetos também estavam com o defunto.
Tudo aquilo era confuso demais.
Ao menos ainda podia tentar ouvir música. Abriu sua playlist e colocou os fones de ouvido. Tocou no botão "play".
I'm the ghost in your house
Calling your name
My memory lingers
You'll never be the sameRiu da ironia na música do Depeche Mode, mas logo o sorriso desapareceu do rosto. A conversa com Bruno ainda ressoava em sua mente. Nunca conversara abertamente com ninguém sobre a confusão na sua mente a respeito da própria sexualidade, e tocar naquele assuntou trouxe-lhe à tona o seu primeiro beijo.
Era uma manhã de sábado. Luciana, a "Cenourinha", foi visitá-la e as duas estavam em seu quarto, deitadas de bruços na cama, lado a lado, assistindo a um desenho japonês pelo notebook. Era uma comédia romântica sobre duas garotas que se apaixonavam mas pertenciam a clubes rivais do colégio. Fazia frio e estavam cobertas por um edredom. Pedaços de bolo de milho e canecas de chocolate quente repousavam em uma bandeja ao lado do computador.
Depois de alguns episódios, as protagonistas do anime finalmente se beijaram. Luciana olhou para Melissa, sorrindo. Acariciou os cabelos e o rosto da amiga e beijou seus lábios lenta e carinhosamente. Sorriu novamente e voltaram a acompanhar o desenho de mãos dadas e cabeças recostadas uma na outra.
Melissa sentia o coração disparar e não sabia como reagir. Sentia calor, apesar do frio, mas estava feliz. Ambas sabiam que aquilo aconteceria algum dia, e a melhor parte é que foi tudo muito natural. O beijo parecia dizer mais sobre o afeto das duas do que sobre algum desejo sexual. Desejo esse que, em Melissa, nunca se manifestou.
Mas amigas se beijavam daquele jeito? Será que era normal? Melissa não se considerava lésbica, pois não era nada parecida com aquelas personagens de animes ou com outras lésbicas que conhecia. Pensava muito no afeto que sentia por outras mulheres, tinha vontade de beijá-las carinhosamente, abraçá-las apertado, dormir de conchinha e cuidar delas para sempre. Mas só isso. Nunca pensava em nada mais. Por outro lado, Melissa nunca ouvira falar de ninguém que fosse como ela. Será que havia algo errado com seu corpo? Com sua cabeça? Por que nunca se sentia à vontade quando as amigas, mesmo as lésbicas, falavam sobre sexo?
Durante alguns meses, Luciana e Melissa continuaram trocando beijos carinhosos enquanto jogavam videogame ou faziam pipoca para maratonar uma série. Não haviam conversado nada sobre namoro – apesar de ouvirem os boatos que se espalhavam na escola e na vizinhança – e isso era ainda mais perfeito.
Até que um dia, quando estavam sozinhas em seu quarto, Luciana a beijou com mais intensidade, tocando-a de modo diferente. Melissa afastou a mão da amiga de sua perna, mesmo sem entender o porquê. Gostava muito de Luciana, achava-a atraente, e pensava que talvez realmente a amasse de verdade, mas não tinha vontade alguma de algo assim.
Após daquele dia, Melissa evitou a Cenourinha por algum tempo. Precisava entender a si mesma antes de continuar aquela relação. Não queria magoar Luciana, mas também não era certo ceder às coisas que não lhe fariam bem. Disse à Cenourinha que conversariam assim que entendesse melhor a si mesma e a seus desejos.
No entanto, não houve tempo para isso. Poucas semanas depois, aconteceu a terrível discussão entre as duas. E depois da discussão, não houve tempo de pedir desculpas pelas palavras que não deveriam ter sido ditas. Luciana tirara a própria vida antes de qualquer uma dessas confusões terem sido resolvidas.
Nos fones de ouvido, os versos na voz de David Gahan em meio a sinterizadores pareciam cada vez mais irônicos.
One thought is all it takes
You lose control
You make mistakes
This pain will never leave
Until I die
You'll always grieveMelissa chorava ao lado do ônibus fantasma. Definitivamente a morte não tornava as coisas mais fáceis.
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Morte, o Intervalo da Vida
Teen FictionMelissa não tinha muitas perspectivas na vida. Nem na morte. Após perder sua melhor amiga em um acidente misterioso, carregou a culpa por ter dito aquelas últimas palavras. Uma doença cardíaca trouxe, então, a morte súbita que encerrou a breve est...