Capítulo 1 - Solidão e remorso

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Naquela noite, a chuva batia na janela como se fosse um mau presságio. Pelo menos foi isso o que se passou na cabeça de Melissa. Apoiando o queixo com a mão, olhava as gotas dando pancadas no vidro como se fossem uma assombração insistindo em entrar. Tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac!

– Melissa!

Acordou de seu devaneio e percebeu que todos os olhares estavam voltados para ela. Ficou vermelha.

– Você fez o trabalho de casa ou não?

A professora de biologia do segundo ano colegial não era das mais simpáticas. Parecia sempre de mau humor e quase não olhava para os alunos. Era uma mulher jovem, de estatura mediana, que usava franjinha e rabo de cavalo.

Melissa suspeitava que a frieza da professora era por causa dos olhares e comentários dos meninos. "Gostosa", repetiam eles em voz baixa, direcionando os olhares a determinadas partes do corpo da mulher sempre que ela entrava na sala de aula. Melissa sabia que isso só acontecia porque a professora era bem "padrãozinho". "Calma, meninos, ela só é branca e magra", dizia quando ouvia os comentários nojentos.

– Fiz – respondeu à pergunta da professora. Ajeitou-se lentamente na cadeira e levou para trás algumas mechas do cabelo castanho ondulado. 

Levantou-se com um par de folhas de papel e percorreu a fileira de alunos que exibiam expressões zombeteiras. Uns risinhos aqui, outros cochichos ali... os colegas faziam o de sempre: encher o saco.

Depositou seu trabalho de casa em cima da mesa da professora, onde já havia uma pilha de folhas cobertas de garranchos. A mulher que acabara de chamar sua atenção por causa da distração estava agora absorta em suas próprias anotações.

– Quando sai a nota? – perguntou Melissa para testar se a professora caíra no mesmo pecado pelo qual acabara de ser repreendida.

– Semana que vem – respondeu ela, atenta, sem tirar os olhos das anotações.

Melissa voltou para seu lugar, olhando novamente a chuva pela janela.

Apesar da escuridão e das chuvas noturnas daquela época do ano, ela estava satisfeita com a decisão de passar para o turno da noite. O único problema era que, após três meses estudando naquela turma, ainda se sentia em um ambiente estranho.

Sempre estudara em turmas onde, ano após anos, dividia a sala de aula com as mesmas pessoas. Já havia se acostumado a ouvir piadinhas a seu respeito por ser distraída ou por não ser o padrão de beleza magra. Sem se importar muito, não poupava comentários sobre o machismo dos meninos. 

Agora, no turno da noite, além da impopularidade, também tinha que lidar com a solidão. Todos eram desconhecidos, e já tinham suas próprias rodinhas de amigos. Ela era uma estranha invadindo território alheio, excluída pelos demais.

Mas valia a pena. Sua mãe já não conseguia mais arcar com as despesas, e o pai, sempre ausente, já não pagava mais a pensão. Melissa insistia para que entrassem com um processo, mas a mãe sempre adiava a coisa. Vai que um dia ele volta, Mel... alegava, esperançosa. Vamos esperar mais um pouco antes de tomar uma atitude mais drástica...

"Atitude drástica" era uma série de medidas que não incluía Melissa ter que abrir mão da sua já debilitada vida social. Quem precisa disso, afinal?

Por isso, a garota de dezessete anos arrumou um emprego em uma lanchonete, e se transferiu para o turno da noite do colégio. O salário não era grande coisa, mas ajudava a colocar alguma comida na geladeira – e lhe dava direito de escolher uma porcentagem das guloseimas, oportunidade que aproveitava com todo chocolate, iogurtes e biscoitos recheados de chocolate que as finanças "permitiam". Comer os doces era sua recompensa por aturar o chefe repetindo "sempre diga aos clientes que o salgado é de hoje".

Estudar à noite também tinha a vantagem de que os professores pareciam pegar mais leve. Sabiam que a maioria dos alunos ali trabalhavam durante o dia e estavam mortos de cansaço. Por isso, essas distrações constantes de Melissa eram facilmente perdoadas.

Pelo menos ela não fazia parte dos 10% da população de sua idade que nem trabalha, nem estuda. Abençoadas sejam todas as estatísticas, e um dia Melissa trabalharia no IBGE para temperar sua autoestima com números e porcentagens que refletem a miséria de pessoas mais azaradas do que ela.

No entanto, ela jamais revelaria que suas distrações não tinham nada a ver com cansaço. Ela simplesmente não se importava. Havia nela uma apatia confortável lhe dizendo que tudo estava do jeito que deveria ficar.

E naquela noite, além da apatia de sempre, a chuva trouxe lembranças repentinas. Lembranças dolorosas. Pensava em Luciana, a menina de rosto coberto por sardinhas e dona de um sorriso largo que não conseguia disfarçar mesmo se quisesse.

Melissa dera a Luciana o apelido de "cenourinha" por causa dos cabelos quase alaranjados. Amava como aqueles cachos volumosos deixavam o rosto redondo da amiga ainda mais fofo. Também amava sua risada discreta e sempre verdadeira. Era tão fácil fazê-la rir, e tão gostoso observá-la quando isso acontecia...

Luciana era muito tímida, mas na companhia de Melissa conversava alegremente sobre todos os assuntos. Desde que se conheceram na quinta série, as duas colocavam suas mesas uma ao lado da outra em todas as aulas. Dividiam os trabalhos, os lanches e as notas. Eram aquele tipo de amigas que só davam cola uma à outra e irritavam o restante da turma.

Mas ela não estava mais ali. Dois anos após o enterro, e Melissa ainda não se acostumara a não ter aquela menina tímida sentada ao seu lado, espiando as respostas em seu caderno e elogiando sua caligrafia. A vida tornara-se vazia, escura, fria e úmida, como uma noite de chuva no outono.

"E a culpa de tudo foi minha", Melissa repetia em silêncio. As últimas palavras raivosas que dirigiu à Luciana antes daquele incidente foram as piores que dissera em toda a sua vida.

O que era mais cruel? O remorso ou a saudade?

Luciana era a pessoa que a consolava quando Melissa levava um fora de alguma menina. Que levava potes de sorvete para comer assistindo comédias românticas quando Melissa estava com crise de depressão. Que lhe incentivava a continuar escrevendo suas poesias quando não tinha mais ânimo. Que lhe deu o primeiro beijo.

E não estava mais ali por sua culpa.

As lembranças foram interrompidas por um trovão. O barulho das pancadas na janela se intensificava. Enquanto olhava a chuva batendo no vidro, Melissa pensava no sorriso largo e nos cachos alaranjados. "Entre todas as coisas que quebrei e jamais tive a oportunidade de consertar, essa é a que mais machuca".

As gotas tentavam atravessar a janela como se o fantasma do passado estivesse voltando para julgá-la e dar-lhe a sentença final. Tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac, tac...


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