Capítulo 5 - Os mortos se unem

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Melissa mal reconhecia os lugares por onde o ônibus passava, devido à escuridão em que a cidade mergulhara. Com as portas dos estabelecimentos fechadas e letreiros apagados, ficava difícil até mesmo saber em qual rua estava.

Reconheceu uma loja de doces. Era onde costumava ir com Luciana para gastar o dinheiro da passagem de ônibus. Convenciam o cobrador a passar por baixo da catraca ao ir para a escola e, assim, economizavam o suficiente para comer várias guloseimas. O item açucarado favorito de Cenourinha era o doce de abóbora caseiro, e aquela loja possuía o mais saboroso e suculento doce de abóbora que poderiam encontrar na cidade. Luciana tinha certeza absoluta disso, e Melissa escreveu essa frase em seu diário, grifando o pleonasmo e xingando mentalmente o professor de gramática. "Meu diário, minhas regras".

Não fazia ideia de onde estava. O ônibus já percorrera as ruas da cidade por mais de meia hora. Onde ficava esse Terminal, afinal de contas? Seria possível que ficasse fora da cidade? Em algum momento o ônibus atravessaria um portal e entraria em um lugar sobrenatural? Sempre imaginou que quando morresse faria uma viagem para o espaço, caso fosse para o céu, ou para dentro da terra, caso fosse para o inferno.

Algo raspou na janela e interrompeu os pensamentos de Melissa. Ela gritou. Era escuro e tinha asas.

— O que foi? — perguntou Bruno. Todos olhavam para ela.

— Acho que era um morcego.

Bruno já estava em pé, estufando o peito.

— Não se preocupem. Não deixarei nada acontecer com vocês.

— Calma, macho, é só um morceguinho e as janelas estão fechadas — disse Cristiane. Bruno fechou a cara e logo sentou-se.

Todos voltaram aos seus pensamentos. Sofia também permanecia quieta, ainda no banco à frente. Melissa tentava pensar em algum meio para se aproximar. A gótica parecia tão interessante, com aquele jeito meio atrevido! Mas Melissa não sabia como iniciar uma conversa. A única coisa que conseguiu pensar foi em lhe perguntar como morrera, mas Sofia já ficara emburrada quando Bruno tocou nesse assunto.

Além disso, parecia estranho começar uma conversa com esse tópico. "Oi, como foi sua morte? Doeu? Foi rápida ou você agonizou por muito tempo? Posso tocar na sua cicatriz? Nossa, cabe meu dedo nesse corte". Não parecia boa ideia. Mas talvez tivesse estatísticas para consolar. "Pelo menos você não faz parte dos 0,3 por cento que morreram no meio da rua por correr demais debaixo da chuva, correndo risco de ter o corpo esmagado e as tripas espalhadas pelo asfalto por causa de algum motorista com problemas nos freios e pneu careca".

Se já era difícil puxar assunto com os vivos, com os mortos parecia uma tarefa ainda mais angustiante.

— Você é uma pessoa religiosa? – Melissa pulou de susto. Era Marcos, que sentara ao seu lado sem que ela percebesse. O fone de ouvido estava pendurado no pescoço.

— Bem, não tanto quanto a Edna, mas... eu fiz Catequese. Depois deixei de acreditar em Deus, mas acho que sei de alguma coisa da teoria. Por que?

— Sei lá... eu sou católico, sabe... é muito estranho quando as coisas são só metade do que você acredita.

— Como assim?

— Bem, somos apenas "almas", agora, indo para algum lugar. De certo modo a bíblia estava certa. Mas errada sobre todo o resto. E pelo jeito nenhuma religião do mundo previa o que está acontecendo aqui.

— É verdade. Se bem que nosso motorista é o Caronte. Ou é isso o que ele diz. Ele faz parte da mitologia Grega, não é? Então todos nós lemos o livro errado. Deveríamos ler a Odisséia na escola.

— Aetia. Talvez Hecale e Epopeia.

— Saúde.

— O quê?

— É uma piada. Não entendi nada que você falou, então eu disse que foi um espirro.

— Desculpe, não sou muito bom com piadas e ironias. Bem, os nomes que falei são outros livros da mitologia grega que deveríamos ter lido.

— E quem escreveu esses? — perguntou Melissa, fingindo algum interesse e procurando o olhar de Marcos. Notou que ele sempre olhava para baixo ou para a frente e seu tom de voz era um tanto monótono. 

— Calímaco. Foi um diretor da biblioteca de Alexandria e escreveu algumas obras muito importantes. Por exemplo, a história de que a moeda para o Caronte era colocada nos olhos do defunto? Bobagem, Calímaco já dizia em Hecale que era na boca. Desculpe, eu começo a falar informações aleatórias mesmo quando ninguém está interessado.

— Você deve ser o nerd da sala de aula — disse Melissa, sem querer ofender, mas já arrependida do comentário. — Quero dizer, parece ser estudioso.

— Bem... quando se é negro tem que ser duplamente melhor do que o melhor branco. Ou não temos nenhuma oportunidade nesse mundo.

— Finalmente alguém disse uma verdade aqui! — exclamou Sofia, virando-se para os dois.

— Eu nunca tinha pensado nisso dessa forma — admitiu Melissa.

— Conviva mais com negros e vai pensar bastante — respondeu Sofia com um meio sorriso e uma piscadela.

— Pretendo fazer exatamente isso — Melissa devolveu o mesmo sorriso.

— Espero que possamos nos aliar — disse Marcos olhando para o espaço entre as duas meninas — Sinto que em breve vamos precisar de pessoas em quem confiamos. Vocês são confiáveis.

— Uau! De repente alguém confia em mim? — perguntou Sofia, debochada.

— Você é autêntica — disse Marcos — dá pra sentir isso. Vocês não são enganadoras.

— Obrigada. — disse Melissa — É uma boa ideia permanecermos juntos se houver algum problema. Eu não confiaria no casal da igreja, por exemplo. Nem na vereadora.

— Cristiane também é confiável — disse Marcos em um tom um pouco mais tímido — Vou falar com ela depois.

— E eu? — perguntou Bruno, que sentou-se rapidamente no banco atrás de Melissa e Marcos.

— Você também é confiável, no sentido de ser honesto — disse Marcos — Transparente como vidro. Só não sei se é confiável no sentido de sensato. Mas, pelo menos, é forte. Músculos também são úteis. Às vezes.

As meninas riram, mas Bruno não se sentiu ofendido. Pelo contrário, ajeitou ainda mais a postura ereta e ergueu o queixo.

— Pode deixar, eu vou proteger vocês — disse ele com um sorriso brincalhão. Era uma criançona, concluiu Melissa.

Sofia revirou os olhos.

— Até momentos atrás você queria me exorcizar achando que sou um espírito do mal — a gótica reclamou com Bruno.

— Esquece isso, ok? Se alguém aqui é do mal... — sussurrou Bruno — esse alguém está lá no fundo do ônibus.

Concordaram em silêncio. Melissa ficou aliviada por não ser a única a ter percebido que havia algo errado lá no fundo. Algo errado estava sentado à janela do lado esquerdo. Uma opressão parecia lhe atingir a nuca cada vez que pensava naquela presença. Se Melissa fechasse os olhos, poderia sentir pura perversidade em forma de tentáculos emanando daquela aura putrefata. Tentáculos cheios de ventosas, rastejando debaixo dos bancos para agarra-la pelos pés, puxá-la e devorá-la. E depois vomitá-la para fora do véu que separa o mundo dos vivos e a desconhecida dimensão onde horrores inimagináveis habitam.

— E então, gata — disse Bruno colocando a mão sobre o ombro de Melissa, fazendo-a pular de susto mais uma vez — como foi sua sensação de morte? A minha foi incrível!


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Eu prometi que não ia abandonar essa história, não prometi? ;)
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