Capítulo 4 - Os mortos discutem

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Não havia nenhum idoso no ônibus. Melissa achou isso engraçado porque sua avó sempre lhe dizia "você jovens só comem porcaria, por isso estão morrendo cedo... eu tenho oitenta anos porque como só coisa da horta".

A viagem seguia silenciosa. O casal que antes discutia, agora permanecia quieto: o homem lia um livro e a mulher a bíblia. Mal se olhavam quando falavam um com o outro.

Outros continuavam cabisbaixos e deprimidos, exceto um rapaz loiro de camisa regata branca. Ele era o único que não parecia mal-humorado ou introspectivo. Apenas olhava para as pessoas com olhos bem abertos. Parecia ao mesmo tempo desconfiado e curioso.

A garota gótica parecia que tinha acabado de chorar, mas logo se recompôs. Voltou a encarar Melissa de vez em quando.

— Eu sei o que está pensando — disse a gótica, enfim. Melissa se assustou e levantou uma sobrancelha.

— Lá vai ela... — comentou o rapaz loiro, que sentava um pouco mais à frente.

— Fica quieto! — disse a garota, irritada. Voltou-se para Melissa, molhando os lábios com a língua em um gesto rápido e mecânico — Você está tão desconfiada desse motorista quanto eu.

— Não dê ouvidos a ela — insistiu o loiro. A gótica lhe mostrou o dedo do meio, o que fez Melissa notar os esmaltes pretos e anéis prateados.

— Esse cara é o único que aparece pra gente dizendo que estamos mortos e que vai nos levar a um tal "Terminal"? E sem nos deixar sair? Isso não faz sentido, né? — concluiu a garota. Melissa notou que o olhar dela pulava para várias direções.

— Não... – respondeu Melissa – Não faz.

— Exato! — a gótica levantou-se animada e sentou-se no banco à frente ao de Melissa — Eu tentei avisar esse pessoal, mas todo mundo caiu nesse papo furado.

— Se você quiser sair — o loiro continuou implicando — o motô não vai te impedir, meu anjo. Já vai tarde!

— Não vai impedir — disse a menina em voz mais alta, mas sem se virar para o rapaz — mas vai ficar usando essas chantagens. "Você vai virar uma assombração pra sempre... Buuhhh". Ele usa nosso medo contra a gente.

Melissa reparou melhor na garota, agora que estava perto dela, e concluiu que era muito bonita. Tinha um piercing no nariz largo e outro na orelha direita. Não demorou muito tempo até que Melissa percebesse que era uma travesti.

— Tá me encarando por que sou travesti, porque sou negra ou por causa do visual gótico? — perguntou com um sorriso desafiador depois de ser observada durante algum tempo por uma silenciosa Melissa.

— Não, só estava pensando no que você disse...

— Sei...

— É sério. Qual é o seu nome?

— Sofia. E o seu?

— Melissa.

— Bem, Melissa... Pra mim o nosso motorista está mentindo.

— Por que ele mentiria?

— Ele pode estar nos levando para qualquer lugar. Talvez o plano seja justamente nos transformar em assombração. E esse povo passivo? Podem até fazer parte do plano, ficam aceitando tudo pra fazer a gente se conformar e achar normal.

Melissa tinha que admitir que fazia algum sentido. Mas havia algo no olhar de Sofia que lhe dizia que nem mesmo ela acreditava no que dizia.

— E se ele for um traficante de almas? — continuou a gótica, sussurrando, com olhar preocupado para a parte de trás do ônibus — Ou pior ainda, um estuprador de almas?

Morte, o Intervalo da VidaOnde histórias criam vida. Descubra agora