Conto №29

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Coração

O trabalho no frigorífico não era tão ruim. Mas as coisas ficaram estranhas alguns meses atrás, depois de uma experiência inusitada.

Antes de tudo, todas as noites, um jovem casal chegavam até o meu balcão e faziam o mesmo pedido sempre!

"Coração. Dos mais frescos! por favor"

Como de costume, tirava a peça do freezer, pesava, lhes dizia o preço e eles pagavam, partindo alegres e satisfeitos. Foram dias assim. Semanas. Incansavelmente desta mesma maneira, até chegar o dia em que me perguntei como alguém aguentava comer aquilo todo santo jantar.

" Como pode se incomodar com quem come a mesma refeição todos os dias, querido? Tem gente por aí que não tem é comida nenhuma!"_ Minha esposa diria, se me ouvisse pensar.

Pois bem, numa das últimas sextas-feiras do mês de março, houve uma forte tempestade na região. E ela veio acompanhada com raios e trovões assustadores. Então, seu Juraci, dono do frigorífico, um senhor de idade, gentil e amável, preocupado com a segurança de seus funcionários, resolveu fechar o estabelecimento uma hora mais cedo_ Acho que todos fecharam suas portas mais cedo naquele dia. A cidade inteira estava um verdadeiro inferno.

Aliviado, com a possibilidade de retornar a salvo para casa, peguei emprestado uma capa de chuva e subi na minha moto.

Durante o percurso, depois de me deparar com avenidas totalmente alagadas e impossíveis de ultrapassar, decidi por um atalho menos perigoso. Desci então pela a rua das velhas estradas de ferro, mais conhecida como Deserto Maquinário, e fui sem preocupação. O lugar tinha sido batizado assim porque realmente não havia fluxo nenhum. Nem de pessoas e nem de automóveis. Só o que existia eram sucatas de vagões abandonados. E como o intuito era evitar o trânsito caótico que havia se transformado devido ao mau tempo, não poderia ter decidido melhor.

Eu já vinha pelo o atalho quando a chuva amenizou. Percebendo isso, pensei em parar e ligar para a minha esposa, avisando que estava indo tudo bem e que logo estaria em casa. Conhecendo como a conheço, sabia o quanto poderia está aflita e nervosa com essa chuvarada toda, então, era melhor  tranquiliza-la. Estacionei a moto e tirei o capacete. E bem antes de pegar o telefone, dei uma olhada ao redor.

Nunca tinha parado pra pensar como aquela parte da cidade sempre foi escura e meio esquecida por todos. Iluminação e infraestrutura básica, nunca existiram nem mesmo quando as estações de trem eram o meio de transporte mais popular por aqui. Não havia asfalto também, e nem tão pouco residências comuns, e em alguns pontos, entulhos de coisas enferrujadas estavam espalhadas pelos os cantos.  Coisas que poderiam causar acidentes a motoristas desavisados.

Mas aconteceram coisas bem piores do que um acidente, na minha opinião. E pra ser honesto com vocês, era preferível ter derrapado da moto, quebrado um braço, parado no hospital do que ter visto aquilo.

Num primeiro momento, não soube exatamente identificar o que presenciei. Vi entre as luzes dos faróis, algo atravessando a estrada, correndo. Havia sido muito rápido para afirmar o que seria, mas pelo o que deu para enxergar, poderia apenas ser um pobre vira lata assustado com os trovões.

Ainda com o telefone nas mãos, digitei as primeiras palavras da mensagem quando ouvi ruídos indecifráveis dentro da escuridão a minha direita. Vindo justamente de onde o cão havia surgido.  Demorou para entender que eram sons típicos de mastigação ou algo parecido. Então, atraído por uma curiosidade mordida, deixei de lado as mensagens e liguei a lanterna do celular.

"Má ideia!"

"Má ideia!"

Meus instintos gritavam.

Segui com passos miúdos e cautelosos enquanto meu corpo sentia mais calafrios por conta do desconhecido do que por qualquer outra coisa.  E quanto mais me aproximava do som, mais esquisito e forte ficava. De repente, a chuva parou por completo, e com ela, o barulho na escuridão também cessou. Sendo assim, interrompi os passos e pensei no quanto aquilo era idiotice.

"O que estou fazendo? Estou no meio da escuridão, procurando sei lá o quê. Meu Deus, que imbecil!"

Suspirei, revirando os olhos,  balançando a cabeça negativamente. Depois, dei meia volta e... Vejam só! Meus ouvidos foram torturados com o som perturbador novamente. Virei de frente com rapidez e joguei a lanterna naquela direção e vi o imaginável!

Eram dois... Não! Eram três! Três pessoas!... Uma delas, deitada ao chão... As outras duas, de cócoras ao lado desta...

A pessoa estirada estava morta. Sim, morta! O peito aberto, sangrando! A abertura era larga e profunda. Tão profunda que  dava pra ver ossos... Costelas. Horrorizado, direcionei a laterna para os únicos vivos próximos ao corpo. Um homem e uma mulher, nus e banhados. Banhados de chuva e sangue. Me encararam como se estivessem envergonhados com o flagra.

Nas mãos, pedaços de carne... Carne dilacerada do cadáver diante deles. Pelo o canto dos lábios de um deles, na mulher especificamente, descia uma gosma vermelha e grossa.

De boca cheia, ela falou com olhos rasos, me reconhecendo...

"  Eu passei lá hoje... Mesmo com toda essa tempestade, fomos lá comprar o de sempre... Juro! A gente... Nós! Nós não queríamos machucar ninguém...  Mas olha,  precisávamos disso, moço..._ Mostrou-me o coração humano arrancado _  Precisávamos muito!  Tentamos o cachorro mas... Mas ele acabou fugindo! E eu... E eu não queria que tivesse sido assim... Não mesmo! Isso não é nossa culpa... Pode acreditar na gente...  Não é!  Eu sinto muito, moço... Sinto de verdade!"

Mesmo com as pernas trêmulas,  não esperei para escutar mais nada e corri até a moto e acelerei.... Acelerei como se minha vida depedensse disso.

No dia seguinte, não voltei ao trabalho. E nenhum outro dia. Pedi demissão.

Aquilo ficou em mim como um pesadelo. Fiquei sem dormir por dias. A cena não saía da minha cabeça por nada neste mundo. Às vezes, ainda acordo no meio da noite, gritando. Sonho que estou trabalhando em um outro frigorífico, e de repente, me deparo com aquele casal no meu balcão de carnes, pedindo:

"Coração. Bem fresco! por favor"


Contos Peculiares_ Para Quem Não Teme O EscuroOnde histórias criam vida. Descubra agora