27 de julho

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Me tornei algum tipo de acumuladora de memórias. Tenho empilhado em meu córtex o máximo de você. Já cheguei a passar horas olhando pra uma foto tua pra não esquecer os traços únicos do teu rosto. Pintei através dos meus olhos o tom da tua íris pra deixar gravado o universo vasto que se espaçava através do teu olhar. Ainda me lembro das manhãs calmas em nossa antiga casa; o cheiro de café fresco incendiava os cômodos. Eu podia sentir o perfume do grão torrado por entre as frestas de madeira da parede do meu quarto. A vida era infinita. E enquanto eu me deitava na rede pra me espreguiçar você cantarolava alguma música qualquer após tomar um gole do café. O cigarro aceso por entre os dedos queimava suavemente enquanto o dia começava ali, a partir daquele segundo.
Teus movimentos sempre soaram como dança para mim. Eu me sentia a plateia do teu show e eu adorava ser a única pra viver aquilo. Meus olhos grandes de curiosidade sempre te acompanhavam onde quer que fosse. Você era minha âncora. Me firmava no chão enquanto tudo que eu queria fazer era voar. Se fecho os olhos ainda posso sentir a textura dos meus dedos minúsculos do pé tocando o assoalho de madeira. Os estalos rápidos que se criavam através de cada movimento meu. A nossa casa cantava. E até hoje, tantos anos depois o tom violeta das paredes ainda decora os meus sonhos.
Lembro-me da tua felicidade feroz em algumas manhãs distintas. Você acordava feliz, abria as janelas e dava bom dia aos quatro cantos do mundo. Conversava com as plantas, cumprimentava os raios solares, ensaiava um sorriso e começava o dia. Eu me encantava da cabeça aos pés. E acho que hoje me tornei essa tua força e dia após dia venho resgatando esse brilho intenso que já mora no passado. Um passado um pouco apagado pela falta de memória, por isso aqui e agora transcrevo um pouco da nossa história diária; pro tempo não consumi-lá como fez com o tom da tua voz, ou com a tua risada, ou o cheiro do teu cabelo. Eu já não me lembro mais. Perdeu-se em algum lugar não-fisico. Porque mesmo que não me seja possível lembrar, posso sentir. No centro do meu peito. Como uma chama que nunca se apaga.
Você é uma dessas histórias inacabadas. Daquelas que a gente fica com um ponto de interrogação morando na testa. Criando milhares de finais pouco prováveis só pra satisfazer um mínimo da saudade que assola meu peito todos os dias. Mas também é uma das trajetórias mais bonitas que tive a oportunidade de contar.
Eu sou lisonjeada porque teu ventre foi um dia minha casa e hoje quem mora em mim é você.

-mãe-

Devaneios de um sentirOnde histórias criam vida. Descubra agora