1.
Existem várias maneiras de interpretar os cadernos do meu avô. Uma delas é considerar que não é possível ele passar anos se dedicando a isto, uma espécie de tratado sobre como o mundo deveria ser, com seus verbetes intermináveis sobre a cidade ideal, o casamento ideal, a esposa ideal, a gravidez dela que é acompanhada com diligência e amor pelo marido, e simplesmente não tocar no assunto mais importante de sua vida.
2.
Eu só li uma pequena parte dos cadernos, e fui o único a fazer isso além do meu pai. Ele mandou traduzir o material depois da morte do meu avô e nunca contou nada para a minha avó. Até entendo os motivos dele, e até entendo que isso o constrangesse de algum modo, mas para mim o efeito da leitura desde o início foi outro.
3.
Meu pai é um leitor bastante razoável. Apesar disso, não lembro de ele ter citado mais que dez livros durante a minha adolescência. Talvez não mais que cinco. Lembro de um apenas, É isto um homem?, que ele leu numa edição importada, porque ele vivia repetindo as descrições sobre o funcionamento de um campo de concentração, as noites em que Primo Levi dormia dividindo a cama com um relojoeiro, as histórias sobre números altos e baixos, tarefas, uniformes, sopa.
4.
Meu pai citou É isto um homem? na primeira briga séria que tivemos. Foi no segundo semestre do ano em que fiz Bar Mitzvah, quando disse a ele que queria deixar a escola. Naquela época as coisas já eram diferentes, eu não andava mais com os amigos de antes, não falava mais com eles e já havia me acostumado quando eles passaram também a me hostilizar: de um dia para outro as pessoas começam a virar as costas, e param de telefonar e se dirigir a você para pedir um lápis emprestado que seja, e em uma semana você já não se sente confiante para conversar sobre isso com ninguém, a condenação que pode muito bem durar a sua vida dentro da escola porque não há nada mais difícil aos treze anos do que mudar um rótulo.
5.
Aos treze anos eu era o aluno que tinha sido chamado pela coordenadora para falar sobre a queda de João. Antes de chamar os pais dos outros envolvidos ela teve uma conversa com um por um de nós, eu fui o último a ir, a sala dela era toda enfeitada com desenhos que as crianças mais novas tinham feito no aniversário da escola. Meus colegas enrolavam a coordenadora elogiando qualquer coisa que vissem na sala, que bonitos esses desenhos, incrível como as crianças de hoje são criativas, isto aqui é uma cruz ou um avião? Meus colegas elogiavam a roupa da coordenadora, o penteado, o sorriso dos filhos dela nos porta-retratos, e de nove em cada dez conversas com ela se conseguia escapar sem assinar a ficha de disciplina.
6.
Três assinaturas da ficha davam uma suspensão, mas em alguns casos a pena era aplicada diretamente: dois dias sem vir às aulas, algo não tão grave se não fosse época de provas, e é claro que não foi só isso que mudou a forma como eu era visto na escola. Não foi só porque os outros que deixaram João cair foram punidos, e sim por causa do meu encontro com a coordenadora: eu entrei na sala dela decidido a não dizer nada, a continuar repetindo que havia sido um acidente, mas ela me recebeu sorrindo e ofereceu café e um pedaço de bolo e começou a fazer perguntas sobre o aniversário de João, e eu comecei a lembrar de novo do aniversário, e ela seguiu falando e eu não tinha vontade de elogiar os desenhos e os retratos, e o tom doce que ela usava começou a me deixar inquieto, ela perguntando se eu achava que isso era o tipo de brincadeira saudável, se eu tinha pensado que podia machucar um colega, se eu sabia que a família desse colega tinha dificuldades para conseguir mantê-lo naquela escola, e em algum ponto as perguntas dela e a lembrança do pai de João na festa e a visão do pai de João no parque vendendo algodão-doce para o filho poder dar a festa e ser humilhado pelos colegas na frente da família se misturaram com uma fraqueza, e eu comecei a achar que estava passando mal, e precisava deitar, e precisava de ar porque as janelas estavam fechadas e ela continuava esperando uma resposta até que se deu conta de que eu tinha perdido a cor e quase ao mesmo tempo que botei para fora o café e o bolo e tudo o que havia comido naqueles dias eu disse que a versão do acidente era mentira.
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Diário da Queda - Michel Laub
Historical FictionUm garoto de treze anos se machuca numa festa de aniversário. Quando adulto, um de seus colegas narra o episódio. A partir das motivações do que se revela mais que um acidente, cujas consequências se projetam em diversos fatos de sua vida nas década...