A QUEDA

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1.

Minha bebida preferida já foi uísque. Uma época era vodca. Eu passei por muitas fases de coquetéis: bloody mary, dry martini, mojito. Ao longo dos anos desenvolvi uma especial intolerância a champanhe. Cerveja eu gosto de tomar, mas não consigo em quantidades grandes. Nunca fui chegado em licor. Idem qualquer bebida com gosto de xarope, do tipo Campari ou Underberg, ou feita de anis: tenho especial intolerância ao gosto de anis.

2.

Vinho é bom. Steinhäger faz muito tempo que não bebo. De rum puro eu não sou fã. Cachaça é mais raro. Gosto de conhaque. Gim. Bourbon. Pisco. Ponche. Sangria. Saquê. Tequila. Vinho do Porto. Single malt. Hi-fi. Mint julep. Sea breeze. White Russian. B52. Pula macaco. Alexander. Sex on the beach. Piña colada. Croco. Rictones Vincenzo.

3.

O primeiro sinal de que você tem algum problema com bebida é o fato de que metade das suas conversas giram em torno do assunto, e noventa por cento dessas conversas em torno do fato de que agora você não bebe mais tanto, e você pode passar anos dizendo que esteve numa fase pesada mas agora maneirou e dorme cedo e começou a fazer esporte, e que é perigoso ficar dirigindo por aí como você andava fazendo, e que você realmente pensou que não chegaria aos quarenta se continuasse daquele jeito, e você diz isso com o tom dessas pessoas que sempre têm uma história passada num banheiro ou na sarjeta ou num aniversário em que todos se espantaram porque você atravessou uma porta de vidro e não sofreu nada além de um pequeno corte no nariz, mas quando você já casou três vezes e está prestes a se separar de novo claro que isso tudo já perdeu boa parte da graça.

4.

Eu acordei com o pescoço duro e a claridade. Não eram mais de sete quando percebi que tinha passado a noite no parque. O envelope com os exames do meu pai estava intacto, e nessa hora você não pensa em virar para o lado e dormir mais um pouco ou levantar e caminhar até uma banca de revista ou padaria onde pedirá café e dará instruções sobre o ponto em que o pão deve ser tirado da chapa. Você não pensa em nada embora precise cumprir essas tarefas uma a uma, cada mordida, um gole com cuidado para não queimar a língua, a ida ao banheiro para lavar o rosto, a conta paga com cartão de débito, e dois anos depois eu sei que no momento em que abri os olhos as coisas já haviam mudado, a primeira manhã em que levantei com a consciência da responsabilidade, como meu pai passaria os dias, quem cuidaria dele.

5.

Meu pai começou a escrever as memórias logo depois que soube do Alzheimer. Eu nunca perguntei a ele o motivo, não só porque não queria estragar uma distração sempre saudável nesses casos, mas porque o significado daquilo, considerando a forma como ele escrevia e as coisas que estavam ditas ali, era um tanto óbvio.

6.

Eu já tinha visto ela na praia. Eu perguntei isto para ela: a sua família não veraneia em Capão? Onde fica a casa de vocês? Onde vocês ficam na praia? Eu gosto de nadar no mar e também em piscina térmica. Ao mesmo tempo eu esperava a próxima música. Quando começasse a próxima eu convidaria. Estava escuro no salão. Eles tinham posto um globo de luz no canto de trás, ficava girando. Eu conhecia metade das pessoas. Elas me conheciam também, eu acho. Estava todo mundo olhando para mim. Tinha que usar gravata naquela época. Nenhum homem sem gravata no salão.

7.

Talvez meu pai tenha imaginado que podia ser como um exercício, um equivalente às palavras cruzadas, as frases servindo para estender a lembrança das coisas, como quando você faz anotações em aula e depois estuda e tudo o que o professor disse passa a ser o que você lê nessas anotações, mas no fundo eu não acredito nisso. Ninguém escreve um livro de memórias por causa disso, sabendo que no futuro será incapaz de ler por causa de uma doença, a não ser que tenha chegado ao ponto em que meu avô chegou ao escrever o dele.

Diário da Queda - Michel LaubWhere stories live. Discover now