MAIS ALGUMAS COISAS QUE SEI SOBRE O MEU PAI

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1.

Dos seiscentos e cinquenta judeus deportados para Auschwitz junto com Primo Levi, seiscentos e trinta e oito morreram em menos de um ano. Dos doze que sobraram, Primo Levi foi o único a escrever um livro, É isto um homem?. Ao contrário do meu avô, ele se preocupou em registrar cada detalhe da rotina do campo, desde a chegada, em 1944, até a libertação pelo Exército Vermelho já no fim da guerra.

2.

Antes de É isto um homem?, não se sabia que botaram uma placa na entrada de Auschwitz, ao lado de uma torneira: não beber, água poluída. O regulamento proibia dormir de casaco, ou sem ceroulas, ou sair do bloco com a gola levantada, ou deixar de tomar ducha nos dias marcados.

3.

As unhas da mão precisavam ser cortadas regularmente, o que só podia ser feito com os dentes. As do pé eram aparadas ao natural pelos sapatos. Os sapatos eram distribuídos de forma aleatória, e o prisioneiro tinha poucos segundos para escolher à distância um par que parecesse do seu número, já que não eram permitidas trocas posteriores, e segundo Primo Levi essa é a primeira decisão importante a ser tomada, porque um sapato apertado ou largo demais cria feridas que criam infecções que incham os pés e impedem de caminhar e correr e o atrito do pé inchado com a madeira e a lona dos sapatos cria mais feridas e mais infecções que acabam levando o prisioneiro para a enfermaria, e esse é um diagnóstico muito difícil de reverter em Auschwitz.

4.

Primo Levi diz que em Auschwitz a morte começa pelos sapatos, e fico imaginando se ele estava se referindo apenas ao tempo no campo ou às décadas depois de calçar o par que conseguiu pegar naqueles cinco segundos decisivos. Primo Levi morreu aos sessenta e oito anos, em Turim, Itália, depois de ter escrito treze livros, boa parte sobre o Holocausto, e ter sido traduzido em várias línguas, e ter retomado sua carreira de químico, e casar e ter filhos, e receber prêmios e virar uma celebridade literária na Europa e no mundo, e fico imaginando se era nesta escolha, um número maior que o pé, um número menor, talvez o número exato por uma sorte rara e invejável entre o milhão e meio de prisioneiros que passaram pelo campo, que ele estava pensando quando abriu a porta do apartamento e caminhou até a escada e nela caiu numa ocorrência que quase nenhum de seus biógrafos julga ter sido acidental.

5.

A morte começa de muitas maneiras, e não sei se meu avô chegou a perceber isto, a semente, o marco zero a partir do qual passou a não interessar que ele sobrevivesse a Auschwitz nem sei como, e saísse de lá nem sei em que estado, e se recuperasse na Polônia ou na Alemanha ou não sei nem onde, e desse um jeito de embarcar para o Brasil superando não sei nem que tipo de problema, porque a partir dali estava mais ou menos decidido que ele passaria o resto de seus anos da mesma forma que Primo Levi. A única diferença é que, em vez de ter uma vida familiar aparentemente comum e décadas depois se jogar de uma escada, ele teve uma vida familiar aparentemente comum e décadas depois começou a escrever aqueles cadernos.

6.

Leite — alimento líquido e de textura cremosa que além de conter cálcio e outras substâncias essenciais ao organismo tem a vantagem de ser muito pouco suscetível ao desenvolvimento de bactérias. O leite é o alimento perfeito para ser bebido por um homem quando ele se prepara para passar a manhã sozinho.

7.

Uma vez vi um filme em que o filho entra no escritório do pai e descobre que todas as gavetas são ocupadas por cigarros avulsos enfileirados em ordem milimétrica, um dia depois de o pai ter tido um colapso e quebrado a porta de vidro do chuveiro, e fico imaginando se algo assim aconteceu com o meu pai quando ele leu a primeira página ou a primeira linha daqueles dezesseis volumes.

Diário da Queda - Michel LaubWhere stories live. Discover now