1.
As primeiras anotações nos cadernos do meu avô são sobre o dia em que ele desembarcou no Brasil. Já li dezenas desses relatos de imigrantes, e a estranheza de quem chega costuma ser o calor, a umidade, o uniforme dos agentes do governo, o exército de pequenos golpistas que se reúne no porto, a cor da pele de alguém dormindo sobre uma pilha de serragem, mas no caso do meu avô a frase inicial é sobre um copo de leite.
2.
Aparentemente meu avô queria escrever uma espécie de enciclopédia, um amontoado de verbetes sem relação clara entre si, termos seguidos por textos curtos ou longos, sempre com uma característica peculiar. O verbete leite, por exemplo, fala de um alimento líquido e de textura cremosa que além de conter cálcio e outras substâncias essenciais ao organismo tem a vantagem de ser muito pouco suscetível ao desenvolvimento de bactérias.
3.
A seguir meu avô passa para porto, bagagem, Sesefredo, e não é difícil perceber que os registros obedecem à ordem na qual ele se deparou com cada um desses lugares, objetos, pessoas e situações. Dá para acompanhar a sequência como uma história, mas, porque os verbetes são evidentemente mentirosos, num tom grosseiramente otimista, isso é feito de maneira inversa: meu avô escreve que não há notícia de doenças causadas pela ingestão de leite, que o porto é o local onde se reúne o comércio ambulante que trabalha sob regras estritas de controle fiscal e higiene, e não é difícil imaginá-lo no cais, depois de ter comido os últimos pedaços do pão endurecido que foi seu único alimento durante a viagem, tomando seu primeiro copo de leite em anos, o leite do novo mundo e da nova vida, saído de um jarro conservado não se sabe onde, como, por quanto tempo, e em poucas semanas ele quase morreria por causa disso.
4.
Os imigrantes judeus que chegavam ao sul do Brasil, primeiro no porto de Santos, dali para o porto de Rio Grande e finalmente num pequeno vapor para Porto Alegre, costumavam se hospedar em casas de parentes ou conhecidos longínquos ou em pequenas pensões do centro. O nome da pensão em que meu avô ficou era Sesefredo. Nos cadernos, ele a define como estabelecimento amplo e asseado, quieto nas manhãs e aconchegante no início da noite. Um lugar onde alguém com febre tifoide provavelmente contraída de um copo de leite é tratado pelos proprietários gentis que falam alemão, que explicam em alemão a natureza da doença, seus sintomas, sua taxa de mortalidade em vinte e cinco por cento dos casos, isso numa época em que os antibióticos específicos para esse tratamento ainda não tinham sido inventados, ou ao menos não haviam chegado ao Brasil, ou ao menos àquela pensão. Na Sesefredo era possível enfrentar aquelas quatro semanas de vômitos, dor de cabeça, mal-estar e febre de quarenta graus graças à gentileza de seus proprietários, o casal que não faz ameaças a seu novo hóspede, que não passa quatro semanas dizendo que vai botá-lo na rua assim que acabar seu último centavo.
5.
Ao contrário da minha avó, meu pai falava pouco sobre banalidades da vida do meu avô. Talvez porque ele tenha morrido quando meu pai tinha catorze anos, e a partir daí não havia sentido em lembrar se o meu avô chegava cedo ao trabalho, se era simpático com os clientes, se tratava bem os funcionários, se gostava do que fez por dez ou doze horas diárias até se aposentar e passar o resto dos dias em casa, trancado no escritório, e se nesse tempo todo ele fez alguma consideração sobre a casa onde eles moravam, a cidade, o país, sobre qualquer coisa que tivesse visto e vivido, qualquer experiência que tirasse dele o rótulo presente em qualquer conversa que meu pai tivesse a respeito, o homem que sobreviveu ao nazismo, à guerra, a Auschwitz.
6.
Meu pai falava muito na Alemanha dos anos 30, em como os judeus foram enganados com facilidade, e era fácil achar que uma casa invadida era um evento isolado, que o ataque a uma ótica ou ferragem cuja porta amanhecia com uma estrela pintada era obra de um bando qualquer de vândalos, porque se você tem negócios e paga impostos e gera empregos e vive confortavelmente adaptado ao país onde nasceram seus parentes até o terceiro grau de ascendência não vai querer imaginar a hipótese de perder tudo, e da noite para o dia embarcar num navio, você com a roupa do corpo rumo a um lugar onde não conhece nada dos costumes, da política, da história.
YOU ARE READING
Diário da Queda - Michel Laub
Ficção HistóricaUm garoto de treze anos se machuca numa festa de aniversário. Quando adulto, um de seus colegas narra o episódio. A partir das motivações do que se revela mais que um acidente, cujas consequências se projetam em diversos fatos de sua vida nas década...