NOTAS (1)

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Meu pai me deu um triciclo quando eu tinha três anos, e o som do triciclo era o mesmo de quando se põe uma tampa de margarina presa aos aros de uma bicicleta, e o triciclo era um caminhão e eu prendia um reboque onde botava o que ia achando pela casa, almofadas, pratos, toalhas, velas, um frasco de xampu, e eu dizia ao meu pai que estava fazendo entregas de produtos por várias cidades e ele dizia, o seu avô trabalhava mais ou menos assim logo que chegou ao Brasil.

Em todas as fotos o meu avô está de terno e não dá para ver o número de Auschwitz. Os porta-retratos da minha avó ficavam numa prateleira ao lado da mesa. Os móveis da casa da minha avó eram de madeira escura: cadeiras, uma mesa de chá, uma penteadeira. A cama era estreita e muito macia, e era como os cabelos da minha avó, amêndoa e algodão e um tom de roxo nos fios e eu gostava de deitar ali depois do almoço e ler revistinhas num dia de inverno.

Eu aprendi a ler antes que ensinassem na escola, e meu pai treinava comigo mostrando palavras no jornal e dizendo, que letra é esta, e eram letras de imprensa, diferentes das que eu aprenderia na cartilha da abelhinha que aplicavam na época, barriga para este lado é a, sem as costas é c, para o outro lado é b, a cobra é s, e o barulhinho que a cobra faz antes de atacar é ssssss mas se está dormindo é zzzzzz, e a primeira palavra que li foi casa, e a escrivaninha onde meu pai abria o jornal tinha um apontador fixo na borda, com manivela, uma caixa de lápis e o barulho da lâmina cortando a madeira, a força, uma bolha no dedo.

Meu pai explicava como funcionam as máquinas de costura, a linha, o motor, os tipos especiais de agulha para pesponto, botões, malhas estruturadas, bordados, couro, e o tecido que eu botava de olhos fechados entre as mãos e meu pai dizia, o que é, e eu tinha de responder, é linho, seda, este é sintético, e quando eu tinha uns dez anos ia à loja do centro e meu pai chamava um funcionário e me fazia repetir na frente dele, e o funcionário me levava para tomar sorvete enquanto meu pai ficava no escritório falando no telefone e mexendo sem parar na calculadora.

Meu pai me buscava na casa do rabino e sempre perguntava, o que você aprendeu hoje, e eu dizia, não aprendi nada, só decorei um monte de palavras que eu não sei o que significam, e ele dizia, o rabino precisa explicar do que falam estes trechos da Torá. Cada sábado em que alguém faz Bar Mitzvah um trecho diferente é lido, e é só na cerimônia que você toca no pergaminho, a cor muito branca e as letras hebraicas impressas ou desenhadas à mão, os bastões envernizados que sustentam os rolos, a capa de veludo para proteger da luz, e você está de terno e sapatos e talid branco com motivos azul-celeste e quipá de camurça com uma lantejoula dourada no topo.

O prédio da minha escola tinha três andares e um muro alto e na calçada em frente havia canteiros de flores em que a pintura estava quase escondida sob uma camada de poeira, e que eram blocos de aço disfarçados chegando a uma profundidade de dois metros e meio para proteger contra atentados a bomba.

João usava sempre a camiseta amassada. Eu nunca o vi usando uma camiseta de marca. Esse foi o meu presente que minha mãe comprou para ele, a moda eram as estampas de surfe, marcas do Rio de Janeiro, uma gaivota, um relâmpago, uma plataforma.

O chão do salão de festas do aniversário de João era de ladrilhos. Quando ele caiu fez um estalo, eu ouvi porque estava perto e porque todo mundo tinha terminado de dar o grito treze, foi um instante depois do último e, que foi curto, ao contrário do primeiro, que é estendido por entusiasmo ou por hábito ou por raiva mesmo.

Na saída da festa nós pegamos um táxi. Os táxis de Porto Alegre nos anos 80 eram fuscas, e o pedal do freio fazia um barulho de mola velha quando solto, acho que os motoristas gostavam desse barulho, eles soltavam o pedal bem rápido para ouvi-lo. Os motoristas sentavam em pelegos no frio e botavam imagens de santo ou patas de caranguejo na alavanca de mudança.

Enquanto João se recuperava eu ia à escola e passava a manhã sozinho, e no recreio ficava na sala e comia um sanduíche que passei a trazer de casa, e às vezes a térmica com refrigerante vazava porque eu não fechava direito, manteiga e queijo e alface molhado e doce.

No dia em que pedi desculpas a João não lembro se fez calor ou frio. Na primeira vez em que João mergulhou na piscina de casa estava abafado como se fosse janeiro. Toda vez que João ia à minha casa mostrava como estava fazendo os exercícios, trezentas flexões com os braços bem abertos, abdominais e alongamentos, o ginásio da escola tinha uma sala de musculação com aparelhos antigos sem correias nem encosto.

Nas poucas vezes em que fui à sala da coordenadora as fotografias eram as mesmas, o filho dela de chapéu de pirata, a filha bailarina, e os desenhos das paredes não mudavam também: pipas, montanhas, casas com uma janela acima da porta, um sol com olhos e cabelos e sorrindo.

Quando você tem fama de dedo-duro as pessoas olham com desprezo, mas isso nem sempre está na expressão do rosto, em algum movimento da boca ou das sobrancelhas, porque são poucos os que fazem isso de forma direta, e menos ainda os que dizem algo além do que já disseram os envolvidos, os outros quatro que um por um vieram falar comigo e me chamaram de filho da puta.

O movimento que meu pai fez para me imobilizar no dia da briga: braço direito no pescoço, por cima, e esquerdo como auxiliar, para me dar os golpes quando ele soltou meu bíceps.

O suporte de durex que eu joguei nele tinha um rolo pela metade. Era de acrílico, algo como vinte centímetros, talvez dois quilos, e a ponta onde se cortava a fita tinha dentes cerrados de metal.

Meu pai bateu três vezes na porta do meu quarto quando veio falar comigo, no dia seguinte à briga. Meu pai nunca ficou doente quando eu era criança. Nunca ficou doente quando eu tinha quinze, dezoito, vinte e cinco anos, e não lembro de tê-lo visto doente depois que fez cinquenta, cinquenta e cinco, sessenta.

Quando eu soube da doença do meu pai eram três da tarde e eu entrei num bar e pedi uma cerveja. Tomei a cerveja e pedi um conhaque. O conhaque esquentou na hora, álcool de cozinha num dia de sol sob um balcão com salgados e um baleiro colorido.

Eu pensei no meu pai enquanto tomava conhaque. E pensei que precisava parar de beber. E pedi mais um conhaque, e depois mais outro e outro, e passaram horas e chegou um momento em que eu lembrei de novo, eu não poderia mesmo chegar em casa assim porque precisaria me explicar e discutir os detalhes dos exames do meu pai.

As luzes da noite são borradas e você fala sozinho enquanto caminha. É quase uma alegria fazer isso sabendo que ninguém está prestando atenção. Uma quadra antes de um parque. Umidade e fumaça de ônibus. Barro fresco da última chuva. A tábua do banco riscada, nenhum animal por perto, os exames do meu pai num envelope, apenas eu e o silêncio agora, eu deitado e o torpor que está para vir, é só querer, é só fechar os olhos e pensar num lugar escuro e isolado e um balanço morno e lento e constante rumo ao nada.

Diário da Queda - Michel LaubWhere stories live. Discover now