O DIÁRIO

11 1 0
                                    


1.

Não há como ler as memórias do meu pai sem ver nelas o reflexo dos cadernos do meu avô. Não só porque ambos resolveram passar seus últimos anos entregues ao mesmo tipo de projeto, e seria ridículo argumentar que isso aconteceu por acaso, mas porque em pontos muito específicos os registros dos dois são opostos.

2.

Meu pai escreveu as memórias com um objetivo, como um recado sobre algo que nunca tinha conseguido dizer ao longo de quarenta anos? Desde que fui a Porto Alegre dar a notícia do Alzheimer eu penso se isso seria possível depois de tanto tempo, ou em qualquer tempo, meia dúzia de palavras ou um livro inteiro que possa mudar o sentimento que um filho tem pelo pai, aquilo que um filho sabe desde que nasceu, o julgamento que ele silenciosamente faz quando ainda é frágil e depende exclusivamente do amor do pai, e não adianta o pai passar o resto dos anos tentando se redimir da distância ou do descaso ou da falta proposital ou acidental desse amor porque é essa memória que o filho seguirá levando, tenha ele a idade que tiver.

3.

Desde os catorze anos meu pai nunca deixou de sentir o mesmo pelo meu avô, e imagino que a descoberta dos cadernos não tenha mudado isso de forma substancial, porque se os verbetes do meu avô podem ser resumidos na frase como o mundo deveria ser, que pressupõe uma ideia oposta do mundo como de fato é, eu duvido que meu pai já não soubesse disso muito antes da leitura do texto: que para o meu avô esse mundo real significava Auschwitz, e se Auschwitz é a maior tragédia do século XX, o que pressupõe a maior tragédia de todos os séculos, já que o século XX é considerado o mais trágico de todos os séculos, porque nunca antes tanta gente foi bombardeada, fuzilada, enforcada, empalada, afogada, picada e eletrocutada antes de ser queimada ou enterrada viva, dois milhões no Camboja, vinte milhões na União Soviética, setenta milhões na China, centenas de milhões somando Angola, Argélia, Armênia, Bósnia, Bulgária, Chile, Congo, Coreia, Cuba, Egito, El Salvador, Espanha, Etiópia, Filipinas, Haiti, Honduras, Hungria, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Líbano, Líbia, México, Mianmar, Palestina, Paquistão, Polônia, Portugal, Romênia, Ruanda, Serra Leoa, Somália, Sri Lanka, Sudão, Tchecoslováquia, Tchetchênia, Tibete, Turquia e Vietnã, cadáveres que se acumulam, uma pilha até o céu, a história geral do mundo que é tão somente um acúmulo de massacres que estão por trás de qualquer discurso, qualquer gesto, qualquer memória, e se Auschwitz é a tragédia que concentra em sua natureza todas essas outras tragédias também não deixa de ser uma espécie de prova da inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares — diante da qual não há o que fazer, o que pensar, nenhum desvio possível do caminho que meu avô seguiu naqueles anos, o mesmo período em que meu pai nasceu e cresceu e jamais poderia ter mudado essa certeza.

4.

A inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares sempre foi um conceito à disposição do meu pai. Ninguém mais que ele poderia ter se agarrado a isso para justificar toda e qualquer atitude ao longo da vida: ele poderia ter sido o pior patrão e o pior amigo e o pior marido e o pior pai porque aos catorze anos se defrontou com esse conceito, diante do meu avô caído sobre a escrivaninha, e então a briga que tivemos quando decidi mudar de escola e a conversa que tivemos em frente à churrasqueira e a maneira como ele reagiu à minha entrada na faculdade e à vinda para São Paulo e aos meus três casamentos e ao dia em que dei a notícia do Alzheimer poderiam ter sido diferentes, e neste momento eu não estaria falando dele porque já o teria julgado desde sempre, e assim como ele em relação ao meu avô eu não teria nada a dizer a seu favor, e assim como ele em relação ao meu avô eu não teria nenhum carinho ou empatia, e jamais teria me sentido como um filho se sente em relação ao pai sem que precise dizer ou explicar coisa alguma.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Mar 30, 2019 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Diário da Queda - Michel LaubWhere stories live. Discover now