MAIS ALGUMAS COISAS QUE SEI SOBRE O MEU AVÔ

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1.

Descobri que meu pai tem Alzheimer há dois anos. Um dia ele estava dirigindo a poucos quarteirões de casa e de repente teve a sensação de não saber mais o caminho. Foi um episódio rápido e isolado, mas como ele vinha esquecendo pequenas coisas, onde estavam as chaves, um terno que havia sido mandado para a lavanderia, numa frequência suficiente para ser notada pela minha mãe, ela me ajudou a convencê-lo a procurar ajuda. Eu nunca tinha levado meu pai ao médico e até onde sabia ele costumava fazer exames regulares de sangue, coração, próstata.

2.

O Alzheimer é uma doença cujos mecanismos não são totalmente conhecidos. Sabe-se que duas proteínas têm ligação com o seu aparecimento, a tau e a beta-amiloide, responsáveis pela estrutura celular e pelo transporte de gordura para o núcleo das células. Nos doentes elas se depositam ao redor e no interior dos neurônios, o que os sufoca. A idade é um dos fatores de risco, e um estilo de vida saudável associado a atividades intelectuais específicas pode adiar a evolução inicial.

3.

Eu gosto de conversar e ler sobre medicina, embora neurologia não seja uma área que me interesse especialmente. Nos últimos anos tive labirintite, gastrite, conjuntivite, sinusite. Tive também um dedo quebrado, uma crise lombar, uma lesão no ligamento anterior do tornozelo, uma catapora tardia. Tive episódios de arritmia e do que os médicos chamam de síndrome de pré-síncope, um mal cardíaco sem maior gravidade cujo tratamento com remédios não vale a pena e cujos sintomas não chegam a incomodar, e há pelo menos um ano tenho tosse frequente e cansaço, o que pode ser atribuído ao estresse ou ao sedentarismo ou ao abuso de álcool.

4.

Eu comecei a beber aos catorze anos, depois que mudei de escola junto com João. Embora já tivesse tomado um ou outro copo de cerveja com meu pai, e uma ou outra taça de vinho em algum jantar de adultos em casa, a primeira vez de verdade foi numa festa logo no início das aulas. Eu não fui direto à festa, e sim à casa de um colega cujos pais não estavam, e quando saímos de lá alguns estavam cantando e falando alto e eu entrei no táxi com uma garrafa de plástico cortada ao meio. Alguém tinha misturado cachaça com Coca-Cola, e era impossível tomar um gole sem prender a respiração, e ao descer do táxi eu senti as pernas meio ocas e nessa hora já estavam todos rindo e foi mais fácil entrar e passar o resto da noite encostado numa parede ao lado de uma caixa de som: eu misturei a cachaça com vodca e um vinho com embalagem de papelão que deixava os dentes roxos e antes das onze já tinha me arrastado até o jardim e procurado um canto escuro e sentado com a pressão baixa e ninguém me acharia ali depois que eu me deixasse cair sem ajuda porque ainda nem conhecia direito os colegas.

5.

Demorou para os colegas perguntarem se eu era judeu, porque identificar sobrenomes é coisa de pessoas mais velhas e em geral também judias, e o meu não termina em man ou berg ou qualquer desses sufixos óbvios que dão pistas a quem não sabia onde eu tinha estudado antes. Nas aulas da escola nova o Holocausto era apenas eventualmente citado entre os capítulos da Segunda Guerra, e Hitler era analisado pelo prisma histórico da República de Weimar, da crise econômica dos anos 30, da inflação que fazia as pessoas usarem carrinhos para levar o dinheiro da feira, e a história dos carrinhos despertava tanto interesse que se chegava ao vestibular sabendo mais sobre como alguém precisava ser rápido para que o preço do pão e do leite não subisse antes de passar no caixa do que sobre como era feito o transporte de prisioneiros para os campos de concentração. Nenhum professor mencionou Auschwitz mais de uma vez. Nenhum jamais disse uma palavra sobre É isto um homem?. Nenhum fez o cálculo óbvio de que eu, com catorze anos naquela época, certamente tinha um pai ou avô ou bisavô meu ou de um primo ou de um amigo de um amigo de um amigo que escapou das câmaras de extermínio.

Diário da Queda - Michel LaubWhere stories live. Discover now