Meu pai não tem o mesmo nome do meu avô. Eu não tenho o mesmo nome do meu pai. Há uma série de coisas que não herdei dele também: o cabelo, o nariz, a grafia. Também não faço cálculos de cabeça com números altos, nem gosto de ouvir rádio pela manhã, o mesmo programa todo dia, um modelo de pilha em volume baixo com um locutor que fala da violência e do trânsito e da roubalheira na Câmara dos Deputados enquanto meu pai come pão e uma fatia de queijo fazendo um barulho intercalado de mastigação que irrita a minha mãe há cerca de quarenta anos, e por boa parte da manhã ela reclama porque ele não recolheu a louça e não atendeu o telefone e não foi capaz de responder a uma única pergunta dela nesses mesmos quarenta anos, e por volta de dez ou onze horas os dois já estão conversando normalmente e planejando uma viagem para algum país onde ele possa passar ao menos uma tarde enfurnado em lojas de artigos eletrônicos enquanto ela compra roupas e presentes e ele reclama porque daria para encher um terminal de carga com tanto pacote para gente de quem ninguém nunca ouviu falar.
Do meu pai eu herdei a cor dos olhos (castanhos, meio amarelos em dias de muita luz), o hábito de ler (ficção no meu caso, não ficção no dele), alguns dos pratos preferidos (churrasco, queijo derretido, arroz misturado com molho de carne e gema de ovo). Sou teimoso como ele também. A descoberta do Alzheimer foi o único momento desses quarenta anos em que pensei de verdade nessa teimosia, se é que dá para chamá-la assim, e se é que dá para creditar a ela o fato de eu ter chegado a essa idade tendo contado ao meu pai a maioria das minhas histórias, cada decisão que tomei sobre o que na época parecia relevante, o aluguel de um apartamento, a escolha de uma profissão, a mudança de carreira e de cidade, o início e o fim de dois casamentos, os livros que escrevi e as coisas de que mais gostei e aquilo que num telefonema semanal para Porto Alegre resumia o que eu achava que seria gentil contar para ele, ao menos no sentido de distraí-lo e distrair a mim mesmo para que nenhum dos dois precisasse dizer nada sobre o fato de que dali para a frente seria mais ou menos aquilo, meia hora de conversa por semana e mais uma ou duas visitas por ano em que passaríamos um dia rápido e agradável fingindo que o tempo não passou, e que para sempre seria possível eu continuar escondendo dele o meu segredo mais importante, aquilo que de alguma forma sempre definiu o que sou, e que de alguma forma também só pode ser explicado por um conceito — uma verdade, uma mentira ou as duas coisas, depende de como você reage a uma cena como a do meu avô caído na escrivaninha.
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Diário da Queda - Michel Laub
Historical FictionUm garoto de treze anos se machuca numa festa de aniversário. Quando adulto, um de seus colegas narra o episódio. A partir das motivações do que se revela mais que um acidente, cujas consequências se projetam em diversos fatos de sua vida nas década...