1.
O diagnóstico do Alzheimer é feito em várias etapas. Primeiro é uma consulta simples, o médico pergunta sobre os lapsos de memória do paciente, se ele fuma e bebe, se toma remédios, se teve alguma doença grave e fez algum tratamento ou cirurgia nos últimos anos. O médico ouve os batimentos cardíacos, mede a pressão, pede exames clínicos de orientação e linguagem, e em seguida uma tomografia, e também uma ressonância magnética, e também uma dosagem de hormônios da tireoide, e também de cálcio e fósforo e vitamina B, e também recomenda o PET Scan e o SPECT, uma série de procedimentos para excluir outras causas para os lapsos, como o estresse, a demência, a arteriosclerose, a depressão e o tumor.
2.
A maioria dos pacientes de Alzheimer está na faixa acima dos oitenta anos. Meu pai faz parte dos cerca de três por cento entre sessenta e setenta e cinco anos, e da minoria dos que foram diagnosticados numa fase relativamente precoce dos sintomas. Nela é possível adiar o ritmo da doença com remédios, cuja função técnica é inibir a acetilcolinesterase, e manutenção de índices baixos de glicemia e colesterol, além de exercícios rotineiros para a memória: sudoku, palavras cruzadas, perguntar ao paciente sobre o que ele acabou de ler no jornal e o que ele fez ou deixou de fazer naquele dia.
3.
É comum ouvir de doentes que resolvem fazer viagens, e se reaproximam dos parentes dos quais estavam afastados, e se tornam mais sábios e flexíveis e tolerantes, e praticam o máximo de boas ações para o máximo de amigos queridos. A primeira coisa que meu pai fez nesse sentido foi dar indicações de que estava se organizando para ninguém ser surpreendido no futuro. Ele me deixou a par das aplicações financeiras, do patrimônio em imóveis, da situação das lojas em termos contábeis e societários. Também começou uma espécie de registro, que inicialmente eu confundi com esses exercícios de memória, um equivalente ao relato do que você comeu no café da manhã, quantas vezes foi ao banheiro, com quem conversou e o que essa pessoa disse e como ela estava vestida e a que horas ela foi embora.
4.
Seria inútil imaginar as razões dele àquela altura, e embora tudo fosse um pouco mórbido eu não poderia me opor ao que virou a grande distração do meu pai: as horas no escritório como o meu avô, um projeto mais ou menos como o do meu avô, um livro de memórias com os lugares aonde meu pai foi, as coisas que ele viu, as pessoas com quem falou, uma seleção dos fatos mais importantes da vida dele durante mais de sessenta anos.
5.
Nossa família tinha uma casa na praia. Era uma casa grande. Quatro quartos, sala, uma varanda boa. Um gramado grande na frente. As famílias sempre iam de manhã para a praia, por volta de nove, e voltavam por volta de uma, duas horas. Ninguém comia na areia. Não havia quiosques nem vendedores de milho. Não havia bronzeador e a água era muito mais limpa.
6.
Meu pai sempre gostou de nadar. No verão ele me convidava para caminhar no fim da tarde. A areia dura facilita e dá uma sensação de dor até boa nos pés, você cria casca, nós contávamos os postos de salva-vidas, dez para ir e dez para voltar, depois o banho em frente à nossa rua, a água morna e o corpo levado muito devagar pela correnteza, e você fecha os olhos e solta o ar quando a onda passa, e sente os músculos quando começa as braçadas de crawl e peito, meu pai respirando mais alto que eu, depois da arrebentação é quieto e se enxerga a areia e a luz no poste em frente aos cômoros e ao lado da grama onde está um cavalo magro e cansado e meu pai é magro e também está cansado e o cabelo dele é liso e os lábios como que murchos mas ele está sorrindo e diz com a voz límpida que foi um dia bom e está na hora de voltar.
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Diário da Queda - Michel Laub
Historical FictionUm garoto de treze anos se machuca numa festa de aniversário. Quando adulto, um de seus colegas narra o episódio. A partir das motivações do que se revela mais que um acidente, cujas consequências se projetam em diversos fatos de sua vida nas década...