II - O senhor com fita de luto no chapéu

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       Dia 3 de Julho. O sufoco e o calor eram insuportáveis. O dia começou com grande agitação para Veltchanínov: toda a manhã se viu obrigado a andar de um lado para outro, a pé ou de coche, além da necessidade imprescindível que tinha de ir ainda de tarde à casa de campo de um senhor, homem de negócios e conselheiro de Estado, algures para as bandas do Rio Tchiórnaia, tentando apanhá-lo em casa de imprevisto. Passava das cinco quando Veltchanínov entrou finalmente num restaurante (muito duvidoso, embora francês) da Avenida Névski, perto da Ponte Politséiski; sentou-se no seu canto habitual e mandou que lhe trouxessem o seu almoço de todos os dias.

       Era uma refeição de um rublo, com vinho à parte, o que, dada a sua situação precária, ele considerava um sacrifício sensato. Admirando-se como era possível comer semelhante porcaria, costumava devorar tudo, mesmo assim, até à última migalha, como se não tivesse comido durante três dias. "Isto é doentio" - murmurava de si para si quando atentava no seu apetite. Desta vez, contudo, sentou-se à mesa num estado de ânimo péssimo, atirou o chapéu com irritação sem reparar para onde, apoiou-se nos cotovelos e ficou pensativo. Se o senhor que estava a almoçar perto dele se mexesse de um modo que ele considerasse incomodativo, ou se o moço que o servia não o compreendesse à primeira, então, por mais educado e imperturbavelmente altivo que soubesse ser quando era preciso, seria capaz de se portar como um Junker (2) barulhento e armar talvez um escândalo.

     (2) Junker (al.)—na Rússia czarista, educando da escola militar. (NT)

       Servida a sopa, pegou na colher mas, de repente, mesmo antes de a encher, atirou-a para a mesa e quase deu um pulo. Uma ideia inesperada se acendera nele: naquele instante —só Deus sabia por que processo mental —consciencializou plenamente a causa da sua angústia, daquela angústia especial que dias seguidos o vinha atormentando sem parar e que só Deus sabia como se lhe pegara e que só Deus sabia por que não queria largá-lo. Pois bem, naquele instante percebeu tudo, ficou a conhecer tudo como a palma da sua mão.

       — É aquele chapéu! — murmurou numa espécie de inspiração. — Pura e simplesmente, aquele maldito chapéu redondo, com aquela maldita fita de luto, é a causa de tudo!

       Começou a pensar e, quanto mais se aprofundava nas suas reflexões, tanto mais sombrio ficava e tanto mais surpreendente se lhe afigurava o caso.
       "Mas... que raio de caso pode ser? protestava, sem confiar em si mesmo.
       Haverá nisto alguma coisa que se assemelhe a um caso?"
       Era o seguinte: cerca de duas semanas atrás (não se lembrava bem, mas parecia-lhe que duas semanas atrás) encontrou pela primeira vez na rua, em algum lugar no cruzamento entre as ruas Podiátcheskaia e Mechánskaia, um senhor com fita de luto no chapéu. Era um homem como outro qualquer, nada havendo nele de muito
especial, que lhe passou ao lado muito depressa mas mesmo assim o olhou com uma fixidez exagerada e, não sabia porquê, lhe atraiu de imediato a atenção, e de que modo! Pelo menos, a sua fisionomia pareceu familiar a Veltchanínov. Pelo visto, já tinha deparado com aquele rosto em qualquer lado. "São milhares as fisionomias que encontramos ao longo da vida, não nos podemos lembrar de todas!"

       Ao fim de caminhar mais uns vinte passos parecia já se ter esquecido do encontro, apesar daquela primeira impressão. Mas a impressão persistiu durante todo o dia e, o mais original, na forma de uma raiva sem motivo.

       Agora, duas semanas passadas, lembrava-se de tudo nitidamente e lembrava-se também de que não percebera donde provinha aquela raiva: a tal ponto o não percebera que nunca ligou nem fundamentou o seu mau humor daquela tarde
inteira com o encontro matinal. Porém, o senhor se fez lembrado, logo no dia seguinte, esbarrando com Veltchanínov na Avenida Névski e voltando a olhar para ele de modo estranho. Veltchanínov cuspiu, mas logo de seguida espantou-se consigo por ter cuspido. O certo é que também existem fisionomias que provocam logo à primeira vista uma repugnância sem motivo nem sentido. "Sim, devo tê-lo, de fato, encontrado nalgum lado"  —murmurou Veltchanínov pensativamente, meia hora já depois do encontro. E, mais uma vez, passou toda a tarde de muito mau humor e, à noite, teve até um sonho mau. Mesmo assim, nunca lhe passou pela cabeça que toda a causa da sua nova e especial angústia fosse apenas aquele senhor enlutado, embora, naquela tarde, se tivesse lembrado dele por mais de uma
vez.

O Eterno MaridoOnde histórias criam vida. Descubra agora