A Pável Pávlovitch nem passava pela cabeça "fugir", e só Deus sabe por que razão Veltchanínov lhe fizera essa pergunta na véspera, devia estar mesmo perturbado.
Numa venda junto à igreja logo lhe indicaram o hotel, a dois passos dali, numa ruela. No hotel disseram-lhe que o senhor Trussótski acabara de se mudar para a casa dos fundos, ali mesmo, para os quartos mobilados de Maria Sissóevna. Ao subir para o primeiro andar da casa dos fundos pela escada de pedra estreita, encharcada e imunda, ouviu, de súbito, que alguém chorava. Parecia um choro de criança de sete ou oito anos, penoso, donde irrompiam soluços abafados; o choro era acompanhado pelo bater de pés e por gritos furiosos, mas também como que abafados, num falsete rouco de homem adulto. O adulto, pelo visto, tentava acalmar a criança, para que ninguém ouvisse o berreiro, mas fazia mais barulho do que ela. Os ralhos adultos eram implacáveis, e a criança como que implorava perdão. Metendo por um pequeno corredor, com duas portas de cada lado, Veltchanínov cruzou-se com uma mulheraça muito gorda e alta, no preparo desgrenhado de quem anda por casa de qualquer maneira, e perguntou-lhe por
Pável Pávlovitch. A mulher apontou o dedo para a porta donde saía o choro. Na cara opada e rubicunda da quarentona esboçava-se uma certa indignação.- Não sei qual é o gozo dele! - proferiu em voz de baixo, passando para as escadas. Veltchanínov já ia bater à porta, mas mudou de ideia, abrindo-a sem bater. No quartinho, recheado com um tosco mas abundante mobiliário de madeira pintada, estava ao centro Pável Pávlovitch, sem sobrecasaca nem colete, com a cara vermelha de irritação, mandando calar uma miudinha dos seus oito anos com gritos, gestos e talvez pancadas (como pareceu a Veltchanínov). A roupa da garota, embora à moda das fidalguinhas, era pobre: um vestido curto de lã preta. Parecia acometida de verdadeira histeria, soluçava, estendia as mãos para Pável Pávlovitch, como se quisesse envolvê-lo com os braços, implorar-lhe, suplicar-lhe alguma coisa.
Num instante, tudo se alterou: mal viu o visitante, a menina soltou um grito e atirou-se para o quarto contíguo, minúsculo; quanto a Pável Pávlovitch, por
momentos embaraçado, logo se derreteu num sorriso, tal como na véspera, quando Veltchanínov abrira subitamente a porta que dava para as escadas onde ele parara.- Aleksei Ivánovitch! - gritou num espanto extremo. - Não estava à sua espera, não esperava de modo nenhum que... mas venha, sente-se! Aqui, no divã, na poltrona, aqui, e eu... - Apressou-se a enfiar a sobrecasaca, esquecendo-se de vestir o colete.
- Não faça cerimônias, deixe-se estar à vontade - e Veltchanínov sentou-se numa cadeira.
- Não, não... tenho de fazer cerimônias. Pronto, agora já tenho um aspecto mais decente. Mas por que se senta aí no canto? Sente-se aqui, na poltrona, ao pé da mesa, é melhor... Não o esperava, não o esperava!Sentou-se também numa cadeira, na borda, não ao lado da visita "inesperada" mas virando a cadeira de modo a ficar de frente para Veltchanínov.
- Por que não me esperava? Se eu ontem lhe disse expressamente que vinha, e a estas horas?
- Pensava que não vinha. E, quando acordei e me pus a matutar sobre aquilo tudo de ontem, fiquei desesperado, pensei que já nunca mais o via.
Veltchanínov, entretanto, olhava a toda a volta. O quarto estava em desordem, a cama por fazer, a roupa espalhada, em cima da mesa tinham ficado os copos sujos com restos de café, migalhas de pão e uma garrafa de champanhe meio vazia, sem rolha e com um copo ao lado.Olhou de soslaio na direção do quarto contíguo, mas de lá só vinha silêncio: a miúda, queda, escondera-se.
- Então agora bebe disso? - apontou Veltchanínov para a garrafa.
- São restos... - envergonhou-se Pável Pávlovitch.
- Meu Deus, como o senhor mudou!
- Maus hábitos... e assim de repente. Palavra, é desde aquele dia, não estou a mentir! Não consigo resistir. Não se preocupe, Aleksei Ivánovitch, de momento não estou bêbado e não vou dizer disparates, como ontem em sua casa. Mas estou a falar verdade: é desde aquele dia! Se há meio ano ainda alguém me dissesse que eu me havia de relaxar desta maneira, se alguém me mostrasse a minha própria cara no espelho, não acreditaria!
- Então, afinal, ontem estava bêbado?
- Estava - confessou Pável Pávlovitch a meia voz, baixando os olhos envergonhados -, e veja: ainda que bêbado, estava já após-bêbado. Explico-lho para que saiba que quando estou após-bêbado sou pior do que quando estou bêbado: já tenho pouca embriaguez, mas ainda persistem uma crueldade e uma insensatez quaisquer, e também sinto mais a desgraça. Talvez seja precisamente para sentir a desgraça que bebo. Aí, sou capaz das asneiras mais estúpidas e procuro ofender os outros. Suponho que ontem me apresentei bastante esquisito, não?
- Será que não se lembra?
- Lembrar, lembro...
- Ouça, Pável Pávlovitch, pensei no assunto e acho que isso explica tudo - disse apaziguadoramente Veltchanínov. - Além disso, eu próprio estava um pouco irritadiço e... impaciente de mais, o que estou pronto a confessar. Às vezes não me sinto bem, e a sua visita inesperada, àquela hora da noite...
- Sim, à noite, àquela hora da noite! - Pável Pávlovitch pôs-se a abanar a cabeça, como que com espanto e censura. - O que me levou a fazê-lo? Nunca na vida teria entrado se o senhor não abrisse, teria dado meia volta e ido embora. Passei por sua casa, Aleksei Ivánovitch, há cerca de uma semana e não o encontrei, e depois disso talvez não voltasse a procurá-lo. Seja como for, também tenho o meu orgulho, Aleksei Ivánovitch, embora tenha consciência... do estado em que me encontro. Temo-nos visto também na rua, mas, de cada vez, eu pensava: e se não me reconhece, se me vira as costas? Nove anos não são brincadeira... E não me atrevia a aproximar-me. Ora, ontem já me arrastava desde o Bairro Peterbúrgskaia e esqueci-me das horas. Tudo por causa disso (apontou para a garrafa) e do sentimento. Estupidez, muita estupidez! E se o senhor não fosse como é (porque depois daquilo tudo ainda me vem visitar, porque se lembra do passado), eu podia perder as esperanças de reatar conhecimento consigo.
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O Eterno Marido
RomanceO Eterno Marido narra o reencontro de Pável Pávlovitch, com o ex-amante de sua falecida mulher, Veltchanínov. Nesse reencontro, ambos relembram do passado, vivem momentos de extrema emoção e ódio. Se encontra aqui uma narrativa densa e com toques de...