— Viu? Viu? — Pável Pávlovitch deu um salto para Veltchanínov, mal o rapaz saiu.
— Sim, o senhor tem azar! — deixou escapar Veltchanínov sem querer. Não teria dito aquilo se a dor torturante no peito, cada vez mais forte, não estivesse a irritá-lo. Pável Pávlovitch estremeceu, como se se tivesse queimado.
— Então, e o senhor... quer dizer que era com pena de mim que não devolvia a pulseira!
— Não, não tive foi tempo.
— Por ter piedade, do fundo do coração, como um verdadeiro amigo do seu verdadeiro amigo?
— Está bem, pronto, tive pena de si — enraiveceu-se Veltchanínov.
Contou então em breves palavras como recebera de volta a pulseira e como Nadejda Fedosséevna o obrigara, quase à força, a participar...
— Está a ver, eu nunca aceitaria: já sem isso são tantos os desgostos!
— Mas entusiasmou-se e aceitou! — ripostou Pável Pávlovitch entre risinhos.
— Isso é estúpido da sua parte. Mas pronto, tenho de lhe perdoar. Não viu agora mesmo que não sou eu o protagonista deste caso, mas outros?
— Mesmo assim, entusiasmou-se...
Pável Pávlovitch sentou-se e encheu o copo.
— Acha que vou ceder àquele menino? Faço-lhe baixar a cerviz, sim! Amanhã mesmo vou lá e acabo com ele. Com uma fumigação, varremos esses cheirinhos do quarto das crianças...
Emborcou o copo quase todo e voltou a enchê-lo. No geral, estava a assumir uns modos muito desenvoltos, invulgares nele até àquele momento.
— Ora vejam só, a Nádenka e mais o Sáchenka (13), criancinhas tão queridas, eh-eh-eh!
(13) Diminutivos de Nadejda e Aleksandr. (NT)
De raiva, estava fora de si. Ribombou de novo um trovão fortíssimo, brilhou um relâmpago deslumbrante e começou a chover a cântaros. Pável Pávlovitch levantou-se e fechou a janela.
— Pergunta-lhe ele: "Tem medo da trovoada?", hi-hi-hi! Veltchanínov tem medo da trovoada! E "Kobílnikov... como é?, Kobílnikov tem... não sei quê..." E sobre os cinquenta anos, que tal? Lembra-se? — esganiçava-se Pável Pávlovitch.— Estou a ver que o senhor já se instalou cá — observou Veltchanínov, mal conseguindo articular as palavras por causa das dores —, vou deitar-me... e o senhor faça como quiser...
— Com este tempo não se põe na rua nem um cão! — replicou Pável Pávlovitch, ressentido, quase feliz, aliás, por ter uma razão para ficar ressentido.
— Está bem, fique, beba... durma cá, se quiser! —balbuciou Veltchanínov estendendo-se no divã e gemendo baixinho.
— Dormir cá? E o senhor... não terá medo? )
— Medo de quê? — ergueu a cabeça Veltchanínov.
— De nada, de nada. Da outra vez o senhor parece que se assustou, ou talvez fosse impressão minha...— É parvo! — não se conteve Veltchanínov, e virou-se, raivoso, para a parede.
— Não tem importância — respondeu Pável Pávlovitch.
O doente adormeceu num instante. Toda tensão pouco natural de todo este dia, agravada pelos seus fortíssimos distúrbios de saúde dos últimos tempos, caíra de repente, e tornara-o frágil como uma criança. A dor, porém, levou a melhor sobre
o cansaço e o sono e, passada uma hora, Veltchanínov acordou em sofrimento e soergueu-se no divã. A tempestade amainara; a sala estava cheia de fumo, a garrafa vazia; Pável Pávlovitch dormia no outro divã, deitado de costas, a cabeça em cima da almofada, calçado e vestido. O seu monóculo, tendo-lhe escorregado do bolso, pendia pelo cordão quase até ao soalho. O chapéu estava ao lado, também no chão.
Veltchanínov olhou sombriamente para ele e não quis acordá-lo. Todo dobrado, andava assim pela sala, porque já não aguentava ficar deitado, gemia e pensava no que seria aquela dor.
Tinha medo daquela dor no peito, e não sem razões. Tais ataques já o acometiam havia muito, mas raramente: de dois em dois anos, uma vez por ano.
Sabia que era do fígado. A princípio concentrava-se num ponto qualquer do peito, no epigástrio ou mais acima, uma pressão surda, não muito forte mas irritante. A dor, sem parar por um instante que fosse, chegava a prolongar-se por dez horas
seguidas e, por fim, tornava-se tão forte, a pressão ficava tão insuportável que Veltchanínov começava a temer a morte. No decurso do último ataque, havia um ano, quando, ao cabo de dez horas, as dores se acalmaram, estava tão extenuado que mal conseguia mexer a mão; o médico só lhe permitiu, durante todo o dia, que bebesse algumas colheres de chá fraco e comesse um pouco de pão molhado em canja — como a uma criança de peito. As dores eram consequência de várias casualidades, mas sempre a seguir a desarranjos nervosos. Também desapareciam de modo estranho: às vezes conseguia aliviá-las logo no princípio, na primeira meia hora, com compressas quentes, e logo tudo passava de vez; outras vezes, como na última, nada o ajudava: a dor só passou depois de ter tomado, várias vezes, os eméticos. Mais tarde, o doutor confessou que tinha a certeza de que havia intoxicação.
Agora, que faltava ainda tanto para que chegasse a manhã, não tinha vontade de mandar chamar o médico — aliás, não gostava de médicos. Não aguentou e começou a gemer alto. Os gemidos acordaram Pável Pávlovitch, que se soergueu e
sentou no divã, ficando assim algum tempo, a escutar com medo e seguindo com os olhos, perplexo, Veltchanínov quase a correr de uma sala para a outra. A garrafa que esvaziara tivera um efeito forte: demorou a perceber o que se passava. Por fim, compreendeu e precipitou-se para Veltchanínov; este balbuciou qualquer coisa.
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O Eterno Marido
RomanceO Eterno Marido narra o reencontro de Pável Pávlovitch, com o ex-amante de sua falecida mulher, Veltchanínov. Nesse reencontro, ambos relembram do passado, vivem momentos de extrema emoção e ódio. Se encontra aqui uma narrativa densa e com toques de...