XVII - O eterno marido

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Quase dois anos se passaram sobre a aventura que acabamos de descrever.

Num belo dia de Verão, vamos encontrar o senhor Veltchanínov numa carruagem de um dos nossos recém-inaugurados caminhos-de-ferro. Ia a Odessa visitar um amigo e, ao mesmo tempo, por causa de outro assunto, também bastante  agradável: por intermédio do tal amigo, tinha a esperança de arranjar um encontro com uma senhora extremamente interessante, a quem havia muito desejava ser apresentado.

Sem entrarmos em pormenores, limitamo-nos a dizer que, nos dois últimos anos, Veltchanínov se regenerara muito, ou melhor, se reeducara. Quase não havia sinais da sua antiga hipocondria. Das várias "recordações" e preocupações — consequências da doença — que o assediavam dois anos atrás em Petersburgo, durante o processo judicial que nunca mais chegava a bom termo, apenas persistia nele a vergonha oculta de ter sido tão pusilânime. Consolava-o, em parte, a certeza de que tal situação nunca mais se repetiria e de que nunca ninguém saberia disso.

É verdade que, na altura, abandonara a sociedade, se vestia mal, se escondia de toda a gente — coisa em que toda a gente reparava. Porém, reapareceu tão depressa, arrependido e, ao mesmo tempo, ressuscitado e seguro de si, que "toda a gente" lhe perdoou de imediato o curto afastamento; mesmo aqueles a quem, dois anos antes, deixara de cumprimentar o reconheceram e lhe estenderam a mão, ainda por cima sem quaisquer aborrecidas indagações — como se ele, durante aquele tempo todo de ausência, tivesse estado muito longe, por causa de problemas familiares que nada tivessem a ver com a sociedade, e só agora voltava. A causa de tais mudanças, para melhor, sensatas e vantajosas, residia sem dúvida no litígio que ganhou.

Veltchanínov recebeu, no total, sessenta mil rublos — nada de especial, claro, mas para ele era muito importante: em primeiro lugar, começou logo a sentir terra firme debaixo dos pés e, por isso, a sentir-se também moralmente satisfeito; tinha agora a certeza de que não desbarataria "como um parvo" este seu último dinheiro, como fizera antes com duas outras fortunas, e que este dinheiro lhe chegaria para toda a vida.

"Por mais que o edifício social deles abrisse fendas e o que quer que fosse que eles proclamassem — pensava às vezes, auscultando e espreitando todas as coisas espantosas e incríveis que aconteciam à sua volta e por toda a Rússia —, fosse o que fosse em que se transformassem as pessoas e as ideias, terei sempre, pelo menos, este almoço fino e saboroso que vou agora comer; portanto, estou preparado para tudo." Esta ideia carinhosa até à volúpia foi a pouco e pouco apoderando-se dele por completo, a ponto de lhe provocar uma viragem na vida, mesmo física, já sem falar na moral: tinha agora uma aparência bem diferente em comparação com aquele "hamster" que fora dois anos atrás, que descrevemos acima e a quem já começavam a suceder histórias tão indecorosas. Tinha um ar alegre, desanuviado, imponente. Até as rugas malignas que se lhe tinham acumulado aos lados dos olhos e na testa quase se tinham alisado. Até as cores das suas faces mudaram — ficaram mais brancas, mais rosadas. Neste momento estava sentado num lugar confortável de uma carruagem de primeira classe, e na sua mente desabrochava uma ideia engraçada: é que a estação seguinte era um cruzamento, havendo um ramal novo para a direita. "Se eu abandonar provisoriamente a linha direta e seguir pelo ramal, haverá apenas mais duas paragens até que possa visitar uma senhora conhecida que acaba de voltar do estrangeiro e se encontra agora na solidão da província, agradável para mim, mas talvez muito enfadonha para ela; portanto, há a possibilidade de um passatempo não menos interessante do que em Odessa, de mais a mais aquilo lá em Odessa também não foge..."

Vacilava ainda, sem tomar a decisão definitiva, "à espera de um estímulo". Entretanto, a estação aproximava-se; o estímulo também não se fez esperar.

O comboio parava quarenta minutos nesta estação e era oferecido um almoço aos passageiros. Como de costume, à entrada da sala para os passageiros das primeira e segunda classes acumulava-se um público impaciente e apressado, e — talvez também como de costume — aconteceu um escândalo. Uma senhora, que saíra da carruagem de segunda classe, muitíssimo bonita mas demasiado ataviada para viajante, quase arrastava consigo um ulano, oficial muito jovem e bem apessoado que tentava escapar-lhe das mãos. O jovem oficial estava bastante embriagado, e a senhora, pelo visto uma sua parente mais velha, não o largava, com receio de que o jovem se precipitasse diretamente para o bufete das bebidas.

O Eterno MaridoOnde histórias criam vida. Descubra agora