III - Pável Pavlovitch Trussóíski

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       O homem pareceu petrificar-se. Os dois estavam frente a frente, à entrada da porta, e fitavam os olhos um no outro. Passaram-se assim alguns instantes e, de súbito... Veltchanínov reconheceu o visitante!

       No mesmo instante, o visitante também se deve ter percebido de que Veltchanínov o reconhecera: brilhou-lhe no olhar. Num instante, toda a sua cara como que se derreteu num sorriso dulcíssimo.

       — Parece-me que tenho o prazer de falar com Aleksei Ivánovitch? — quase cantou numa voz que, dadas as circunstâncias, era das mais ternas e inconvenientes, raiando a comicidade.
       — Não será Pável Pávlovitch Trussótski? —articulou finalmente Veltchanínov, com um ar perplexo.
       — Conhecemo-nos cerca de nove anos atrás em T... e, se me permite lembrar-lhe, éramos bons conhecidos.
       — Sim... talvez... mas agora são três da madrugada, e o senhor passou dez minutos a experimentar se a minha porta estava fechada ou...
       — Três horas! — exclamou o visitante, consultando o relógio e manifestando uma estranheza amarga. — Exatamente: três! Peço perdão, Aleksei Ivánovitch, devia ter compreendido ao entrar, até tenho vergonha. Um destes dias passo por aqui e esclareço as coisas, e agora...
       — Oh, não! Se quer esclarecer alguma coisa, por favor, faça-o imediatamente! — caiu em si Veltchanínov. — Faça o favor, entre. O senhor, claro, veio para entrar e não para experimentar fechaduras à noite...

       Estava emocionado e aturdido ao mesmo tempo, sentia que não era capaz de por as ideias em ordem. Sentia mesmo vergonha: é que não havia nada de mistério ou perigo, nada de fantasmagórico; estava apenas ali a figura ridícula de um Pável Pávlovitch qualquer. Contudo, não conseguia acreditar que fosse tudo tão simples; pressentia vagamente e com medo alguma coisa. Oferecendo ao visitante a poltrona, sentou-se com impaciência na sua cama, a um passo da poltrona, inclinou-se, apoiou as palmas das mãos nos joelhos e ficou à espera, irritado, que o outro falasse. Observava-o avidamente e recordava. Mas, coisa estranha: o outro calava-se, talvez não percebendo de todo que tinha a obrigação de começar a falar imediatamente; pelo contrário, olhava ele próprio para o dono da casa com um olhar expectante. Era possível que estivesse, simplesmente, intimidado, sentindo nestes primeiros momentos o mesmo desconforto que um rato na ratoeira.

       Mas Veltchanínov zangou-se.

       — Então?—gritou.—Suponho que o senhor não é uma fantasia nem um sonho! Faz-me uma visita para brincar aos mortos, ou quê? Explique-se lá, caro senhor!

       O visitante mexeu-se, sorriu e começou com cautela: — Se não me engano, o senhor está espantado, antes de mais, com o fato de eu ter vindo a esta hora e... nestas circunstâncias estranhas... Portanto, lembrando-me de como tudo se passou antes e da maneira como nos despedimos na altura, estou até surpreendido... De resto, eu nem sequer queria entrar, e se entrei foi sem querer...

       — Como é isso: sem querer? Vi o senhor pela janela, vi como atravessou a rua a correr em bicos de pés!
       — Ah, viu! Então, se calhar, o senhor agora sabe mais do que eu sobre isso tudo!

       Mas, parece que só estou a irritá-lo... Pronto, é assim: cheguei há três semanas, para tratar dos meus assuntos... É que eu sou Pável Pávlovitch Trussótski, o senhor mesmo me reconheceu. O assunto que me trouxe cá consiste em que estou a solicitar a minha transferência para outra província e para outro serviço, para um cargo muito mais elevado... de resto, também não é disso que se trata!... O principal, se quiser, é que ando a vaguear por aqui já lá vão três semanas e até parece que sou eu próprio quem anda a protelar o meu assunto, de propósito, isto é, a minha transferência, e, palavra de honra, mesmo que consiga alguma coisa, sou capaz de me esquecer que consegui e de não sair desta vossa Petersburgo neste meu estado de espírito. Vagueio por aí como se tivesse perdido de vista o meu objetivo e até como se estivesse contente por tê-lo perdido... neste meu estado de espírito...

O Eterno MaridoOnde histórias criam vida. Descubra agora