02. desencontros

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Estou atrasado para a faculdade, um claro sinal de que as notas suaves de Beethoven ainda não deram as caras na minha vida. Esta montanha russa só está indo para cima, meu caro. Não perdi a hora por causa da troca de palavras com o vizinho. Não foi isso. Quem me dera! Ele, provavelmente, só foi simpático. Logo fechou as cortinas, as sombras pararam de tremular e eu decidi me recolher também. Mas é claro que isso não significa que consegui dormir.

Coloco a ração e a água de Lídia e tento fazer um carinho, mas ela está esquiva hoje. Torço para conseguir comer algo na faculdade, senão vou ter de esperar até o almoço. Meu relógio apita. Deus, por que fizestes o mundo com apenas vinte e quatro horas? Espero que meu ônibus esteja mais atrasado que eu hoje. Limpo a lente do óculos.

Tranco a casa e corro para chegar a tempo no ponto. Sequer olho para a casa dos vizinhos. Eles estão lá, devem estar lá, no seu estranho primeiro dia, enquanto nós que somos... "Veteranos"... Levamos a vida nessa correria de sempre.

Enfim, estou à espera da condução. Resfolegando, coloco os fones para escutar alguma música. Escolho a sinfonia número 1. Finjo que estou em algum espetáculo de balé e que as pessoas que passam fazem parte de um grande musical fracassado. Ansioso, começo a esperar o momento em que elas começarão a dançar e cantar do nada. Mas ele não vem, porque a vida real é mais entediante que roteiro de blockbuster.

Proponho a mim mesmo o desafio mental de respirar seguindo a cadência musical. Um jogo de maluco, convenhamos, que é divertido, mas me deixa muito cansado. É tempo suficiente para que eu veja o ônibus se aproximando. Cego de excitação, aceno para que pare e subo em busca de lugares vagos. Nenhum disponível.

Seguro na barra, ainda embalado pela primeira de Beeth. "Volvenzinho" é meu apelido secreto para o meu gênio preferido. O chacoalhar do ônibus segue a tensão não avisada da música. Sou um pedaço de homem sendo batido em um liquidificador. Meu celular vibra dentro do bolso. É uma mensagem do Randolfo.

Ran Ran: Ei poc. Cadê vc? Já começou aqui.

Merda. Digito o mais depressa possível. A função da vida acadêmica é nos deixar doentes e, se já estivermos, os mais doentes possíveis. Meus níveis de ansiedade sobem drasticamente em dias úteis.

Otávio: Tô indo, inferno. I'm not a robot, ok?

Ran Ran: Você já me encheu a paciência gay pretensiosa.

Otávio: O inglês ajuda no drama. Segura aí.

Eu tento brincar e levar numa boa, mas a verdade é que já começo a ficar apreensivo. E se eu atrasar? E se eu reprovar nessa matéria? Estava tão perto das minhas férias! E se eu conseguir chegar, mas estiver tão afobado que vou fazer tudo errado? O ônibus dá uma freada brusca e quase sou arremessado para frente. A minha sorte é que tenho tanto medo que seguro a barra com muita força. Esbarro em alguém que está na minha frente, mas a pessoa não se importa. Ainda bem. Peço desculpas.

Maldito trânsito infernal de todos os dias. Está um calorão, para completar, e tem muitas pessoas hoje aqui dentro. Nenhuma surpresa. Olho para o lado, na montanha de gente engaiolada nesta cobra de ferro. Outro ônibus está ao lado. Há uma silhueta encostada na janela de familiares listras amarelas, mexendo rapidamente no telefone.

Me dou conta de que é o vizinho da noite passada. Contrário à toda etiqueta de vergonha alheia, começo a chamá-lo por um "ei!" estridente que logo irrita os passageiros. Ele não ouve. Está muito atento ao telefone.

O ônibus volta a correr e ele some da minha vista. É quando o passageiro atrás de mim vira-se para me olhar. É o Camilo, colega de curso, mas que estuda numa particular. Ele é metido a rico, mas todo mundo sabe que a família é falida e que ele sustenta seus luxos tendo casos com homens casados. Nunca troquei uma ou duas palavras com ele nas vezes em que veio para eventos com carga horária ou disciplinas complementares. Mas Camilo agia como se fôssemos amigos de longa data.

A Décima SinfoniaOnde histórias criam vida. Descubra agora