11. segredos da porta

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Fui péssimo nesse primeiro dia. Eu esperava. Direção não é comigo, de verdade. Mas nós dois no fundo sabemos que as aulas só servem de desculpa para nos vermos. Ao menos, minha comunicação com Luccino está melhorando. Embora minhas mãos e ombros estivessem doendo com a sinalização no começo, era questão de prática e costume. Ainda há muitos sinais que não compreendo, mas pelo menos não preciso pedir que ele faça leitura labial, assim como nunca pedi para que ele oralizasse.

Passado este primeiro dia de aulas, resolvemos deixar a bike na casa de Lucci. Ele me pede que eu fique por mais tempo para conhecer sua mãe, Ofélia. Deve ser a senhora que vi no dia da mudança.

Quando entramos na sala, minhas suspeitas se confirmam. É ela. Ofélia cumprimenta o filho calorosamente e olha para mim, perguntando a ele se sou surdo ou ouvinte.

"Ah, o vizinho! Otávio, né?"

"Sim. Muito prazer."

"Senta, Otávio, vou fazer um café bem reforçado pra nós."

Ao seu lado está um rapaz negro, magro e alto. Luccino o apresenta para mim como Januário e ele é surdo. Os dois começam a conversar durante o tempo em que Ofélia vai preparar o café. Esqueça o que eu disse anteriormente. Enquanto eles falam, me dou conta de que, se sei algo de Libras, é o básico do básico. A fluência de quem fala em sua própria língua é evidente. Ainda estou engatinhando nisso tudo.

Aqui, sou minoria, mas serve para que eu sinta um pouco do que Luccino sente todos os dias. É terrível o fato de não entender. Eles não estão me excluindo, pelo contrário. Fazem questão de usar sinais simples e sinalizar devagar para que eu compreenda.

No entanto, não posso não deixar de pensar quando a situação se inverte e é Luccino quem precisa se comunicar, mas não consegue pela barreira linguística entre ouvintes e surdos.

"Amigo Luccino?" Januário pergunta.

"Sim! Vizinho. Você também fotógrafo?"

"Assistente. Mas gostar pintar."

"Legal!"

"Você..." Januário sinaliza algo que não entendo.

"Não entender" Digo.

Dona Ofélia chega no mesmo instante e vê Januário repetindo os sinais.

"Ele disse que você tem um belo rosto para a pintura."

"Ah! Ele quer que eu seja modelo? Como que se diz em Libras?"

Dona Ofélia abaixa a bandeija com o café e me ensina. Repito.

"Sim!" Januário responde com entusiasmo.

"Desculpe. Básico Libras."

"Preocupar não" Prossegue o pintor. "Feliz você querer comunicar. Surdo sente sozinho às vezes. Bom falar pessoas ouvintes. Eu falar junto de arte. Tela ser minha expressão também."

"Januário não sabe oralizar, como Luccino" Dona Ofélia explica enquanto sinaliza. Eu admiro cada vez mais esta mulher. Somente pessoas com muitos anos de experiência na língua conseguem falar português e libras simultaneamente. Pode parecer fácil, mas não é. "Ele é surdo de nascença e pouco compreende do português. Luccino foi perdendo a audição aos poucos."

"Sim!" Januário continua. "Querer estudar como Luccino trabalhar professor. Amar aula. Mas precisar passar Enem primeiro. Difícil mas conseguir sim."

Luccino assente, olhando para mim em seguida.

"Surdo ter muita dificuldade Enem. Prova tem intérprete, mas prova escrita não adaptada Libras. Surdo muita dificuldade entrar e permanecer faculdade. Muitas não ter intérprete tempo todo. Redação exigida Português, mas Português não língua mãe surdo. Entende?"

"Entender."

Januário diz algo a Luccino e, novamente, não entendo. Os dois vão para o quarto dele e fico a sós com Dona Ofélia. Ela, gentilmente, me convida para o jantar. Os dois sobem ao quarto e Ofélia inicia uma conversa para que eu não fique sem graça, já que sou péssimo em puxar assunto.

"Sabe, querido, é muito bom que esteja amigo do meu filho. Luccino precisa de pessoas boas do lado dele. E você me parece uma boa pessoa."

"Sim, é claro. Eu... Fico muito feliz do lado dele."

Ela concorda com um brilho nos olhos.

"Meu filho é um tesouro. Muitos acreditam que ele é incapaz por não ter audição, mas Luccino é tão capaz como qualquer outro. Eu já fui uma mãe, muito errada, sabe? Mas hoje... No que eu puder defendê-lo, eu farei."

"Como assim?"

"Bom, não é fácil para uma mãe saber que seu filho aos poucos irá perder a audição. Tentando... lidar com isso ou superprotegê-lo, fiz com que ele aprendesse o português. Depois... Com mais idade, levamos ao fono, pra que oralizasse. Muitos surdos não gostam, porque é um processo lento e penoso. Eu não sabia nada sobre a existência da Libras."

"A senhora, no fundo, tinha boas intenções."

"É, mas por algum tempo, tratei ele como incapaz. Estava sempre no pé, não deixava fazer as coisas, não permitia que ele tivesse autonomia. Com medo. Sabe como é o mundo e as pessoas. Tem gente que ouve, mas não tem cérebro. Luccino sempre foi independente. Ao mesmo tempo em que eu me orgulhava, tinha medo de que o mundo o engolisse."

"É compreensível, senhora. Que bom que a senhora conseguiu entender logo tudo isso."

"Sim." Ela concorda, feliz. "E que bom que você entrou na vida dele."

"E Camilo?" Eu não devia fazer essa pergunta. Mas escapuliu.

Ofélia ergue as sobrancelhas, cansada.

"Camilo... É como eu era no passado. Não sei como Luccino aguenta. Acho que é a única coisa que ele tem e não quer perder. Mas sofre mais do que é feliz, apesar dos dois se entenderem bem. Camilo foi dedicado e aprendeu a língua do meu filho. Mas a barreira deles é muito mais do que esta. É... emocional."

"Agora ele não precisa ter medo. Ele tem a mim."

"Sim, ele tem a você. Mas precisa contar com ele mesmo primeiro."

"É claro."

"Bom" Ofélia levanta-se. "Pode chamar os meninos pro almoço? O quarto é o último do corredor. Obrigada."

Subo até o corredor dos quartos. Não preciso de muito para descobrir o quarto dele, porque a porta está entreaberta e vejo um pouco da silhueta de Januário. Ao que parece, os dois estão tendo uma conversa séria. Contra os meus princípios, não anuncio chegada.

"Verdade você." Januário diz.

"Bom? Amor bom?"

Não entendo o que Januário diz em seguida. Estou quase anunciando minha presença, mas Luccino faz a datilologia do meu nome, seguido do sinal que escolheu para mim. Paralisado, não desgrudo os olhos das suas mãos.

"Sentir diferente Luccino. O que é?"

Januário responde-o.

"Saber você."

"Não saber."

"Mas sentir."

"Sim. Sinto. Mas... Sentimento.... Camilo igual?"

Engulo em seco. Luccino tem sentimentos por mim, mas ainda não sabe o que é, porque está confuso, porque pensa que é o mesmo que sente por Camilo. Estamos no mesmo nível. Eu também não sei. 

A Décima SinfoniaOnde histórias criam vida. Descubra agora