Hoje, apenas quero escutar o silêncio de Beethoven. Ainda estou tentando lidar com o fato de Luccino ter sentimentos por mim. Mas há Camilo. E talvez ele ache que irá passar comigo pelas mesmas coisas que passa com ele. Eu nunca os vi como um casal. Mas sei que Camilo pode ser manipulador quando quer. Puxou à mãe, com certeza.
Fecho os olhos para apreciar a sinfonia. Quero apenas minha mente em branco, sem visualizar imagem alguma. As notas vão dançando à minha frente, puras. É o suficiente para que eu coloque meus pensamentos em perspectiva. É o começo da manhã e o sol está sendo gentil ao olhar para minha janela e abraçá-la com seus raios.
Noto que Luccino se move no quarto. Só pode ser ele. Enxergo apenas as suas sombras agitadas. É cedo ainda, ele deve estar fazendo o que eu deveria: arrumando-se para a faculdade. Mas prefiro chegar atrasado do que desnorteado. Sei que terei pouco foco para prestar às aulas, porque a figura do professor, agora, é completamente diferente para mim.
Para que eu não passe tanto do horário, poderia ir de bicicleta, mas continuo engatinhando na direção da bike. Hoje, acho que será especial, porque Luccino marcou de irmos ao shopping depois da "aula de direção". E ainda insinuou que precisaremos dar um nome à bicicleta dele.
Pergunto-me, trocando o Beethoven Silence pela The Story of us da Taylor. Será que essas mesmas indagações estão matando ele como estão me matando? Resolvo não arriscar com a bicicleta e ir para a universidade de ônibus.
No meio do caminho, uma pedra. Uma pedra que me fez me arrepender da decisão. Camilo, naquele dia, resolveu alongar o percurso para a sua faculdade e pegar o mesmo ônibus que eu. Coisa de burguês safado: a mãe, embora falida, tem carro, portanto ele não tem necessidade nenhuma de usar transporte público. Ele se sustenta em afirmações como "salvar o meio ambiente" e "ser independente da mamãe". Olho para sua cara cínica e sou tão cínico quanto, em pensamentos. Ah, que bom! Que ótimo que você, como bom burguês, tem essa opção maravilhosa de agir como pobre! Parabéns!
"O Lu me falou que conhece você. Ele é seu professor e tal."
Demoro alguns segundos para perceber que "Lu" é Luccino.
"Aham."
"Como você tem se saído na Libras?"
"Bom. Até que bom. Pensei que ia ficar com a mão dura para sempre."
"Você sabe que não dá pra aprender e ficar fluente numa disciplina de um mês e pouco... Mas Lu e eu estamos pensando em abrir um curso livre. O que você acha?"
"Vai ser ótimo, Camilo."
"Você sabe que ele é meu namorado, né?"
Endureço o maxilar.
"Sei." Caralho, completo mentalmente.
"Acho que, como namorado, é legal abrir esse negócio juntos. O Lu, com essa limitação dele, às vezes depende de mim pra certas coisas. Não é legal deixar que fique só. Não concorda?"
"Camilo, eu acho que..." Respondo, colocando fones de ouvido. "Acho que Lucci é bem capaz de ser independente, aliás, ele já é independente. Tem até um emprego. Sabe o que é emprego, Camilo? Você, como namorado, não deveria ser possessivo. Luccino não depende de você pra nada. Não é como se a vida dele tivesse sido agraciada com a sua gloriosa presença. Você não é um mártir. Agora me deixa quieto. Preciso me concentrar pra minha recuperação de Sintaxe hoje. Se tiver sorte, consigo uma boa nota e não preciso refazer."
"Sim. Graças a mim."
"Graças a minha inteligência."
"Eu acho que..."
"Eu acho..." Interrompo. "Eu acho que não quero te ouvir agora."
E aumento o volume para não escutá-lo.
x-x-x
A aula de direção é triplamente... Suculenta. Primeiro porque acho que fiz um bom teste de Sintaxe. Sério: eu me tornei o maior "fazedor" de diagrama arbóreo daquele campus. Se tudo der certo, não precisarei mais olhar na cara daquele professor "doutor" que só faz ler slide, mas não ensina merda nenhuma. Segundo: Na aula de Libras, Luccino determinou que encerraremos nosso semestre com uma festa e uma apresentação avaliativa. Iremos traduzir para Libras a música "Morada". Ele nos dividiu em equipes e cada uma ficará com um trecho da música. As equipes se dividiram em versos. E eu fiquei com o verso "Não me deixe preencher com vazios o espaço que é só teu".
Parece fácil? Bom, só parece. A Libras é uma língua visual-espacial. Dito isso, agora pense: Como mostrar para um surdo a imagem, a metáfora de um vazio que quer ser preenchido, que pertence a uma pessoa, sem perder a rica carga emocional e dramática desta imagem, sem ficar confuso para ele? Preciso pensar muito. Talvez eu necessite recorrer a algum classificador. Não sei.
É claro que Luccino não vai ajudar ninguém. Ele quer saber até onde pudemos desconstruir o pensamento. Ele quer que pensemos na Libras, não no português. Não deseja que façamos uma tradução de palavra por palavra, porque aí vira português sinalizado. Precisa-se respeitar a estrutura própria da Libras e contemplar a riqueza poética da música sem se tornar uma tradução mecânica.
E terceiro: estou melhorando na direção da bike.
"Pensar nome bicicleta?" Luccino pergunta.
"Não. Dizer janela noite."
Ele fica com as bochechas vermelhas. Talvez sinta saudade dos nossos bilhetes na janela. De minha parte, só preciso melhorar no equilíbrio, mas já consigo me sustentar sem cair por um bom tempo. Lucci tem o dom de ensinar, é claro. Com a paciência dele é que consegui ir longe. Terminadas as aulas particulares, Luccino sobe na bicicleta e me chama para o shopping.
"Vamos otária shopping" Ele diz, imitando Meninas Malvadas.
Reviro os olhos. Sento no carona. Seguimos. Às vezes me angustio de Luccino estar no trânsito agitado dessa cidade inchada. Mas ele é experiente, sabe muito bem de tudo e não quero ser possessivo como Camilo. Confio nele.
Quando chegamos ao shopping, Luccino para em uma loja para comprar camisas e pede minha ajuda para escolher. A atendente fica pálida ao ver que ele é surdo. Lucci quer um modelo de camisa para experimentar no tamanho M, mas ela não consegue compreendê-lo.
"Ajuda?" Pergunto para ele, que diz sim.
"Ele quer uma camisa desse modelo no tamanho M."
A atendente solta o ar, aliviada ao perceber que sou ouvinte.
"Ufa! Ainda bem que você fala."
"Na verdade, eu escuto."
"Eu sei. Não sou preconceituosa, não. Aqui nós temos trinta e dois funcionárias e uma surda. Mas ela não trabalha hoje."
Aceno com a cabeça, desconfortável. Luccino mexe nos cabides.
"Neste caso, acho que seriam trinta e três funcionárias e dentre elas uma surda. Não acha?"
A atendente sorri, sem graça, e vai pegar a camisa M. Luccino vai ao provador e é um consenso de que ele está bonito no modelo. Então, resolve comprá-la definitivamente. De resto, o passeio no shopping seguiu com nossa ida à praça de alimentação e em algumas exposições.
"Divulgar fotografias futuro".
"Convidar eu?"
"VIP".
Rio. Seguimos para a escada rolante. Luccino fica de frente para mim e eu, um degrau abaixo dele. Olho-o, embebecido. Com admiração e carinho. Um pouco bobalhão, aposto. Por reflexo ou pura vontade, sorrio para ele. Está distraído com alguma coisa. Coloco minhas mãos bem devagar perto das suas, enquanto a escada segue para baixo. Um toque tímido que o desperta para mim. Ele me olha e sorri. Não retiro as mãos, segurando o seu olhar. Em seguida, vamos ao cinema. Mas quando voltamos ao piso, ainda sinto meu dorso formigar. Assim como o coração.
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A Décima Sinfonia
Storie d'amoreOtávio veio para uma grande cidade almejando cursar Letras. Leva uma vida tranquila e solitária, nada além do que estava acostumado no Vale do Café. Sua vizinhança amena ganha uma novidade após a chegada de Luccino e sua família. Com as janelas próx...