15. flutua

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Duas semanas se passam quando Mariana pede que eu cuide de Coronel naquela noite. Ela vem até o meu quarto, alcoviteira, e usa um tom doce para me falar do favor. Mariana sabe muito bem que a tramoia com Randolfo é do conhecimento de todos. Sarita ficou encarregada de convencer Luccino, talvez o único inocente do "plano infalível". "Coitado", imagino a drag mandando a mensagem, "ele não vai dar conta dos dois. Coronel e Lídia se odeiam, você sabe que cães e gatos tem uma inimizade milenar".

Então é de se imaginar o porquê estou uma pilha de nervos esta noite. Começo a pensar em coisas idiotas. Como por exemplo, esta expressão "pilha de nervos". Quem foi o otário que inventou isso? Uma pilha com nervos? Pelo amor de Deus, sabe? Falta noção nas pessoas! Começam a bater na porta. Tenho certeza de que é ele. Meu Deus, é ele. Pilha de nervos nunca fez tanto sentido, porque É ELE.

Mariana vai atender, arrumada para a "noite das garotas". Luccino e ela se abraçam e ele entra, vindo direto em minha direção. Nossos toques estão cuidadosos hoje. Luccino pede alguma coisa.

"Você quer pênis?" Falo. Que merda.

"Pênis?" Ele ruboriza. "Não! Água. Água."

Ele repete o sinal de água. Luccino me pediu água e eu confundi com o sinal de PÊNIS. Por que, sim, eles são parecidos, mas eu tinha que me confundir justo HOJE. Saio de fininho para pegar a água. Ele me segue. Eu não queria que fizesse isso, porque a sua presença hoje é o completo caos em minha mente.

Ofereço o copo d'água com um pouco de força demais.

"Meninos" Mariana chega à cozinha e fica um tanto aparvalhada com o clima. Começa a sinalizar simultaneamente. "Estou indo. Vou buscar Sarita na casa dela. Juízo. Quero meu Coronel vivo amanhã."

Ela tem a audácia de dar um sorrisinho no final. É isso. Assim que ouço a porta bater, a realidade cai sobre nós. Eu estou sozinho com Luccino e esse é o meu momento. É este ou nunca mais.

"Comida Lídia horas?"

"30 minutos depois. Ok?"

"Certo."

Solto o ar, nervoso. Luccino percebe.

"Calma..."

Ele pega na minha mão e me leva até a sala. Lídia está no sofá e fica no meio de nós. Luccino faz pequenos carinhos na laranjinha, que fecha os olhos e ronrona. Este momento dura algum tempo, o suficiente para que o silêncio estabelecido me ajude a por os pensamentos no lugar e agir. Dou o primeiro passo.

"Gosta música?" Pergunto.

"Amo."

Levanto do sofá para procurar entre os CDs algum que seja propício. Acabo escolhendo Johnny Hooker. Coloco as faixas no aleatório. Eu sei. Quem usa CD em tempo de Spotify? Mariana trouxe os dela quando se mudou pra cá e tem uma coleção ótima.

Lídia se dá por satisfeita e sai do sofá. A mão de Luccino acarinha o ar. Ele olha para mim e fecha os olhos. Parece sentir o que chama de "emoção do som", as vibrações. Começa a tocar "Flutua".

Luccino se levanta e me chama para dançar com ele.

"Eu?"

"Não Lídia" Ele debocha.

Pego Lídia e começo a dançar com ela. A laranjinha está desgostosa e se mexe nas minhas mãos até ganhar a liberdade. Lucci ri. Ele tem um sorriso que pode iluminar uma cidade inteira. O que vão dizer de nós? Seus pais, Deus e coisas tais. Quando ouvirem rumores do nosso amor? A música começa. Luccino fecha os olhos e eu faço o mesmo. Tento permitir que o ritmo se transforme e se corporifique em mim. Quero que cada compasso da melodia se aglutine com o meu movimento corporal.

Abro os olhos, hipnotizado. Ele está me encarando, imerso em sua própria dança. Os dedos vão e vem, desenhando passos no ar. Chega o momento em que estamos bem perto. Há uma espécie de sincronia agora, como se a melodia amarrasse as pontas soltas. Luccino gira no meio da sala e eu sinto seu perfume característico dominando os meus sentidos. Eu o amo e esta é a única verdade.

De fato, flutuamos. Nossos corpos se rendem à emoção. Estou agitado, mas seguro. Sei que ele respira profundamente, porque posso notar pelos seus movimentos concentrados. A música então termina e caímos no sofá, rendidos. Luccino arfa, olhando para algum ponto da parede. É agora? Espero até que minha respiração volte ao normal. Mas isso é impossível quando aqui está ele, voltando o rosto para mim, esperando que eu devolva o gesto.

"Boa música."

"Amar", ele responde.

Um pequeno segundo se segue quando Luccino aproxima mais o corpo do meu. Ele pega nas minhas mãos e as leva até o seu coração. Estou o encarando como se pudesse dizer tudo com estes olhos.

Enquanto sinto as batidas do seu coração, pego a mão dele. Repito o movimento, trazendo-a até meu peito. Para que sinta a emoção do som. A sinfonia que se realiza no meu peito quando estou perto dele. Aos poucos, a respiração retorna ao habitual.

Luccino retira as mãos.

"Sentir você?"

Respondo:

"Aqui meu coração."

Ele sorri, repentinamente apaziguado. Acho que ele também esclareceu seus sentimentos neste instante. Pelo que sei, Mariana diz que Camilo e ele terminaram após aquele dia na biblioteca. Mas agora é que Luccino tem certeza das coisas. Pelo menos, é o que parece. Não sei se ainda respinga alguma sombra do relacionamento anterior. Talvez eles terem terminado não signifique nada. Talvez... Ele queira um momento para si, livre, após tanto tempo num sufocante relacionamento.

Tenho que parar de me boicotar e aceitar a felicidade quando ela vier. Mas também há o receio de que, após tanto tempo, eu tenha desaprendido a ser feliz. Espero que esta seja uma capacidade inata do ser humano. Que seja o nosso propósito, afinal.

Aproximo meus ouvidos do seu peito. Fico ali, escutando. Luccino afaga meus cabelos. Eu preciso dizer. E é agora. Volto à posição inicial de maneira um tanto brusca e ele se assusta.

"Dizer verdade agora. Minha verdade. Verdade... Parece minha, nossa."

Eu tenho sua atenção e respiro fundo antes de continuar. O impensável acontece: ocorre outra queda de luz e Luccino e eu ficamos no escuro. Ouço as passadas nervosas de Coronel no andar de cima. Ele odeia escuridão.

"Merda!" Falo para mim mesmo.

Apalpo o sofá até conseguir pegar meu celular. Acendo a lanterna. Lídia percebe o novo ponto de luz e se aproxima do canto do sofá. Coronel em seguida. Nada como um apagão para juntar dois inimigos.

Deixo o telefone no centro, no espaço que há entre nós. Tudo que eu quero é preencher esse vazio. Talvez Luccino não entenda de primeira, pela escuridão, mas tenho uma ideia. Pego em suas mãos e abro-as bem. Juntamos nossas palmas.

Começo, então, com as palmas dele abertas, a fazer devagar os sinais do que quero dizer. Levo as duas mãos até o meu peito, deixando-as lá até que ele me olhe.

Eu, o primeiro sinal. Em seguida, afasto suas mãos e as retorno à forma inicial. Por ser mais fácil para o momento, faço o sinal americano para a palavra seguinte. Deixo que ele sinta cada parte desta configuração de mão enquanto acaricia meus dedos sem deixar de me olhar.

Amo, o segundo sinal. Depois, suas mãos abertas envolvem o sinal e os empurro para frente. Levo o "amo" até o seu peito que, desta vez, pelo que sinto agora, está em plena sinfonia. Descompassado, começo a chorar. Este movimento simboliza a terceira palavra. Você.

A luz retorna. Luccino também está chorando.

"Não entender. Não entender!" Sua expressão fica assustada.

Ele está fugindo de mim. Ele vai embora.

A Décima SinfoniaOnde histórias criam vida. Descubra agora