14. vocês parecem o que são

92 10 28
                                    

Ao que parece, o casal vinte brigou pela trilhonésima vez e Camilo está todo prosa pra cima de Luccino para agradá-lo. Como Lucci fica de costas para mim, decido ir até ele. Tenho uma dúvida real que me serve de álibi. Toco em suas costas e ele se vira para mim com expressão de alegria genuína, mas constrangimento por Camilo estar ali. Não o cumprimento.

"Oi Otávio!" Luccino cumprimenta, abraçando-me. Ele segura os tufos do meu cabelo com suavidade e, por reflexo, fecho os olhos. O mauricinho estraga o momento ao pigarrear alto. Eu me afasto.

"Oi Luccino... Pesquisar livros?"

"Camilo querer livros."

Aceno inexpressivamente.

"Ter dúvida sobre música libras."

Luccino aproxima um passo, atento.

"Qual sinal morada?" Pergunto.

Luccino pensa a respeito. Ele encontra os meus olhos de uma maneira que somente nós dois entendemos. Camilo está ao seu lado como uma sombra, mas não compreende o assunto por completo. Acho que estamos querendo dizer coisas além um para o outro sem que ele se intrometa.

"Morada dentro de música não casa. Diferente."

Para falar morada, ele usa o mesmo sinal de casa. Dentro da Libras, o processo de polissemia permite que um mesmo sinal tenha uma variedade de contextos nas frases, assim como os sinônimos da língua portuguesa. Mas... Na música, morada não é simplesmente uma casa. É um estado de ser causado pelo amor à outra pessoa. Estou com tantas dúvidas! E inseguro demais para essa apresentação no final do semestre.

"Medo." Digo a ele, que demonstra indignação.

"Não! Você competente! Conseguir!"

"Ele está dizendo que é um pouco difícil para incompetentes" Camilo retruca.

"Eu sei o que ele quer dizer, Camilo."

Vou deixar os dois a sós. Vou para a outra prateleira de livros, longe dali, mas de onde estou consigo ver o movimento deles entre os espaços vazios de livros. Luccino parece repreender o namorado. Eu ainda tenho dificuldades com a velocidade e alguns sinais, mas claramente é uma discussão afiada. Lucci tem a razão, mas Camilo não sabe ceder.

Reviro os olhos, me afastando dali. Morada é fazer uma casa no coração de alguém. Então tenho o estalo inicial. É isso! Eu posso fazer o sinal de "casa", mas levá-lo ao coração. Assim, fica bem clara a metáfora e nenhum significado se perde. O único perdido aqui sou eu.

Ouço passos perto de onde estou. É o riquinho Camilinho. Vou para a outra sessão, mais longe. Esta é a sessão do curso de Música. Vou dedilhando as lombadas até encontrar algum livro sobre música clássica. Isso me faz lembrar de Beethoven, a bicicleta. Preciso de algum equilíbrio para andar sobre aquelas duas rodas. Preciso... Conseguir isso por mim mesmo, porque talvez meu Luccino não esteja sempre ali para me segurar quando eu cair.

O que é que estou dizendo? Meu Luccino! É dele mesmo. Pego o primeiro livro que vejo e abro numa página qualquer para desanuviar. Longas páginas teóricas sobre Debussy e sua Clair de Lune. Eu amo tanto Clair de Lune. É impossível falar de música clássica sem citá-la. Lembro-me do pouco que sei sobre essa peça musical, que foi inspirada por um poema de Verlaine (aquele da treta simbolista homoerótica com o Rimbaud).

Eu entendo Clair de Lune como uma "música de saída". É como se Debussy quisesse falar sobre as pequenas mortes da vida: o fim de tarde, o fim do piquenique, o fim do amor, o fim da saudade. O fim do afago, o fim da beleza, o fim da noite. Aqueles fins violentos que vieram de alegrias violentas, fogo e pólvora que morrem no disparo, uma caminhada solitária após extenuante dia. As partes que ficam quando tudo termina.

Aqui está: o poema que inspirou Debussy, encontrado no meio da teoria musical do livro. A poesia que é encontrada no meio desse montalhão de academicismos. Percorro as linhas com os dedos e leio em voz alta apenas os versos que gosto mais.

O amor triunfante e a vida oportuna,

Não parecem acreditar em sua felicidade

E sua canção mistura-se ao luar,

Ao calmo luar triste e belo,

Que faz sonhar as aves nas árvores

E soluçar de êxtase as fontes,

As grandes fontes esbeltas entre os mármores.

Suspiro. Guardo o livro, memorizando o nome para continuar a leitura outro dia. Lembro-me que preciso ir com Randolfo (ou será que ainda está de Sarita?) até a casa de seus pais. Apressado, vou correndo através das estantes da biblioteca e esbarro com Luccino quase na saída. Por causa da pressa, praticamente aterrissei em seus braços. Ele engole em seco, impactado pela força dos meus movimentos e me segura pelos ombros.

Sua boca está perto da minha e respiramos sem sincronia, nervosos, sem ocultar a vontade de olharmos um para o outro. Os dele, pretos como o reflexo de uma noite sem estrelas. Os meus, castanhos, como o ocre das árvores que é iluminado pelo sol. Aquela proximidade me desestrutura por dentro.

Ele se afasta.

"Randolfo procurar você."

"Ele querer o quê?"

"Casa família. Posso junto?"

"Você?"

"Sim. Não querer casa já."

"E Camilo?"

"Foi".

Randolfo chega à biblioteca. Ele tirou toda a roupa de drag e agora está como ele mesmo. Meu amigo percebe o momento em que estamos e pigarreia para mim com uma cara de safado.

"Anda gay, preciso pegar minha roupa."

"Tá bom, tá bom."

"Desculpe atrapalhar a leitura na sessão erótica."

Reviro os olhos, delatando sua ousadia para Luccino.

"Erótico!" Lucci indaga, ruborizado.

"Você safado!" RanRan diz para Luccino.

Ele dá de ombros, rindo.

"Talvez."

Eu rio. Randolfo sussurra em meu ouvido:

"Quem vê pensa que são namorados."

"Quem pode pensar algo assim?"

"O Brasil todo, querido? Mas vocês que deveriam se tocar, não se tocam."

"O que você quer dizer com se tocar?"

"Otávio!" Ele finge se escandalizar. "Depois eu sou o pervertido. Avise o seu amigo que meus pais são loucos e talvez pensem que vocês namoram. Só pra ele não ficar vermelhinho..."

"Capaz de eu ficar com você aqui falando essas coisas."

"Além do mais, preciso de vocês dois bem juntinhos pra me fazerem um favor."

"O quê?"

"Vou sair com Mariana e quero que fique cuidando do Coronel. Não me olhe assim. É só um flerte."

"E por que nós dois?"

"Dã! É só uma desculpinha. Vê se aproveita e faz o teu nome."

Acho que está mesmo na hora de preencher esse espaço que é só dele. É hora de finalmente falar dele... E de mim.

A Décima SinfoniaOnde histórias criam vida. Descubra agora