05. laranjinha

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Fico um pouco chocado com a informação. Foi o Luccino quem me trouxe. Irônico: a mesma razão que me tira de casa é aquela que me traz de volta. Mas não quero me iludir, porque Luccino também é aquele que escreve bilhetes fofos, mas te ignora quando você o vê na rua.

Para tentar parar de pensar nele, decido focar no essencial, uma coisa de cada vez. Necessidade imediata: compensar Lídia com um Whiskas especial. É isso: vou ao mercado.

"Já volto, laranjinha. Hoje é especial pra você."

Ela torce os bigodes. Não posso demorar muito, porque a orientadora do projeto mandou três mensagens atrevidas falando sobre o meu atraso. Vou lidar com uma arara do mau humor hoje. O dia não ajuda muito, pois parece determinado a me castigar por uma noite de liberdade. Os raios de sol atravessam o tecido da minha roupa básica, esquentando insuportavelmente esta carcaça de ser humano.

Coitada da minha laranjinha. Eu a encontrei faz dois anos, revirando minha lata de lixo. Sempre quis ter um gato, mas o pessoal lá de casa não gosta. Unindo um gesto de amor a uma vontade antiga, peguei Lídia pra mim. No começo, arisca, medrosa solitária. Com o passar dos meses, foi socializando melhor comigo, se acostumando com a nova vida. Lídia, que deixava a comida pela metade, aos poucos se alimentou melhor, comendo toda a porção sem medo de não ter para depois e entendeu que nunca mais passaria pela realidade massacrante da rua, a crueza do abandono. Ela é, até hoje, minha melhor companheira de vida.

Pensando na gatinha é que me dou conta de que esqueci dinheiro em casa. Ao voltar para o quarto, Lídia não está mais lá. Passo pelo corredor até a escada, cozinha, o outro quarto, a sala, o pequeno quintal. Onde essa gata se meteu? Será que foi namorar com os outros gatos? Danada!

Mesmo acostumado com esses sumiços, tenho medo dela se machucar ou se perder. Volto para a rua, tentando olhar os locais comuns para onde ela iria. Até que dou de cara com Luccino misturado à paisagem. Ele me vê e sorri, aproximando-se de mim.

Mal deixo ele começar a falar: despejo sobre o áudio que ele não respondeu, sobre ter me ignorado, sobre... Sobre razões bobas que eu queria para implicar com ele e sentir menos por ele. Nem me lembro da noite de ontem. Não quero lhe dar razões para me refutar. Luccino faz uma cara estranha e põe a mão na minha boca. Eu me assusto com o movimento inesperado.

Ele movimenta as mãos. Espera. Respira devagar. Então me dou conta. Tudo passa a fazer sentido. Luccino é surdo. Por isso não ouviu quando o chamei várias vezes. Por isso fazia movimentos ontem, mas eu não conseguia ver porque estava sem óculos. Por isso não respondeu o áudio e, sendo assim, só consigo me sentir um idiota.

Puxo ar para dentro. Acho que esse tipo de reação lhe é comum. Não consigo entender sua expressão, se de desapontamento ou outra. Mais movimentos com as mãos e eu sacudo negativamente a cabeça. Tento falar pausadamente.

"Eu não consigo entender."

Ele olha para minha boca e assente. Leitura labial.

Não sei como processar essa informação agora. Eu só quero achar a minha gata, mas também não quero que ele vá embora pensando que irei rejeitá-lo daqui por diante.

"Eu perdi a minha gata."

É idiota demais falar desse jeito, mas não sei de outra maneira. Não sei a língua dele. Uma centelha de memória surge quando me dou conta de que a última disciplina desse semestre é justamente Língua Brasileira de Sinais.

Luccino tenta pegar o celular do bolso, mas se dá conta de que não o trouxe.

Quer que ajude a procurar? Diz devagar.

A Décima SinfoniaOnde histórias criam vida. Descubra agora