Coloco para tocar a quarta sinfonia de Volvenzinho. Confiro o relógio. 3h32 da madrugada. Mais uma noite de insônia em que chegarei atrasado na faculdade por "dormir demais". A quarta sinfonia começa num tom de suspense que cresce devagar. Imagino um filme tenso onde a pessoa está tentando não fazer barulho, mas num deslize acaba encontrando o assassino do machado escondido atrás da porta do banheiro. Adoro me divertir criando essas imagens ao escutar música clássica.
Mas isso me deixa com vontade de ir ao banheiro. Espero não encontrar nenhum assassino por lá. Demoramos um pouco para arrumar as coisas de Mariana no segundo quarto, mais cedo. Meu corpo está cansado, mas minha mente, agitada. Começo a ter mais confiança sobre aprender uma segunda língua. É normal a mão ficar dura ou ficar nervoso na hora da comunicação. No meu caso, porém, soma-se o fato do "Efeito Luccino". Esse... nervosismo que me acomete quando ele está perto de mim.
Se formos pensar na cena da quarta sinfonia, eu devo ser aquelas mocinhas dos filmes, aquelas bem idiotas, que a gente torce para morrer de tão tapada. Ela sabe que o assassino está em algum lugar da casa e parece fazer questão de facilitar a armadilha. Acho que estou assim em relação a Luccino: algo está acontecendo, mas não é muito claro para mim. Algo que... Mariana percebeu, mas não nós dois.
Termino de usar o banheiro. Ufa, nenhuma morte. Ouço resquícios do Beethoven lá em cima. Dou uma olhada em Lídia, que hoje resolveu me dar um gelo e dormir em sua própria cama aqui em baixo.
Volto ao quarto. Já desisti de tentar encontrar sono. É o momento em que a sinfonia se torna mais agoniante e explode em meus ouvidos. Abaixo o volume, temendo que minha inquilina acorde. Agora, o ritmo é diferente, crescente, empolgante. Faz tanto tempo que não escuto a No. 4 que havia esquecido dessa reviravolta melódica.
Aproximo-me da janela, abrindo as cortinas. O cômodo de Luccino está aceso e vejo sombras tremulando. Ora, alguém também não conseguiu dormir? Meu olhar se volta para o céu aparentemente limpo de estrelas. O tempo é seco e mórbido, não há nenhuma movimentação na rua. Passo para a próxima faixa da playlist. É a vez de Mariage D'amour, do Paul de Senneville. Essa é outra melodia mágica. Tenho a sensação de ver o desabrochar de uma flor em pleno inverno. Ela é intensa, melancólica, mas dá espaço à esperança. A flor dança com o ar enquanto os flocos de neve caem no espaço entre eles. O movimento faz o ar tremular e espantar o frio até quando dançam. Por isso, assim é a vida: é preciso se movimentar o quanto puder para que o frio não nos abrace muito.
Fecho os olhos para visualizar a cena. E, ao abri-los novamente, Luccino me encara da sua janela. Meu coração esquenta e se embrulha. Talvez esteja agitado querendo dançar com o dele. Algo o chama atenção atrás de si e ele se vira de costas para mim. Some do quadro de visão. Vejo-o enquanto senta na beirada da cama com o celular em mãos. A expressão diferente daquela de minutos atrás. Ele demonstra estresse e raiva. Por quanto tempo estive assim e por quanto tempo ele me olhava?
Corro para pegar meu caderno enquanto ele parece furioso digitando as mensagens. Aguardo. Luccino suspira e retorna para o nosso lugar. Sim, por que aquelas janelas eram nossas.
Você está bem? Escrevo.
Ele dá de ombros e começa a escrever.
Cansado de drama.
Aceno com a cabeça. Não sei o que responder. Ele faz um sinal que não entendo e fecha as cortinas. Observo as sombras se desfazendo. Acho que ele foi se recolher. A esta altura, eu também deveria fazer isso, apesar da insônia. A Mariage encerrou seu ato.
Fecho a janela.
Hoje, sem pijama de girafa. No entanto, ao encostar a cabeça no travesseiro, ouço barulhos estranhos. De fato, acho que começo a delirar. Os ruídos se repetem. Tem alguém jogando pedras na minha janela e acho que sei quem é.
Abro-as de novo. Lá embaixo, vejo a figura encolhida de Luccino a me observar com expectativa. Faço menção para que espere. Deus, penso, tenho que parar de me iludir com a música clássica. Essa aura de Romeu e Julieta vai acabar comigo. Sim, por que é impossível não querer abraçá-lo quando ele está diante de mim, na minha porta, com a maior cara de cachorro que acabou de cair do caminhão de mudança. Coronel que me perdoe.
"Que foi?" Eu falo, sem sinalizar.
Luccino pega o caderno, o mesmo onde escreve as mensagens para mim.
Eu preciso tanto falar com alguém, escreve. Convido-o para entrar. Levo-o até meu quarto e digo que vou preparar chá. Um dos primeiros sinais que perguntei para ele na sala de aula, aliás. Luccino agradece e aguarda.
Ao voltar, dou para ele a xícara. Ele mergulha o sachê para se distrair. Observo seus lábios rosados, o sorriso largo e o jeito "para dentro" de ser, apesar do lado de fora ser aparentemente seguro. Fico pensando na espécie de solidão que ele sente. Algum tipo diferente, talvez. Pergunto-me se houve dias como esse, em que ele queria, em desespero, falar com alguém às 4h57 da madrugada, mas sem ter ninguém que o compreendesse o bastante em sua própria língua. Meu peito se enche de culpa ao notar que sou aprendiz, ainda bastante raso, e não sei se vou conseguir consolá-lo ou descobrir a tristeza que ele sente.
Luccino sinaliza "triste". Mão em Y, polegar tocando o queixo, expressão facial característica desse sentimento. Está me dando agonia não poder ajudá-lo como eu queria.
"Eu não saber muito", uso os sinais que aprendi. "Sinto muito."
"Entendo", ele responde. "Você aqui bem."
Ao sinalizar "aqui", ao invés dele marcar o lugar físico, que poderia ser o meu quarto ou a rua, suas mãos vão em direção ao peito. Eu faço bem a ele, mas não apenas por estar presente. Por ter um lugar nos seus sentimentos. Quais, porém?
"Não querer falar motivo?" Pergunto.
Ele sacode a cabeça com veemência.
"Esquecer. Esquecer" Diz.
Chego mais perto. Eu sei que abraços são curativos. Então, envolvo meus braços para proteger seu peito de tal melancolia. Não sei até que ponto vai a sua surdez, se é profunda ou leve, moderada. Mas se Luccino não estiver ouvindo meu coração bater muito rápido agora, espero que esteja sentindo isso nas emoções que quero lhe repassar com esse abraço. E, afinal, parece que nossos corações conseguiram dançar juntos pela primeira vez.
O grande bloco de notas está de escanteio, quase caindo, aberto numa folha em branco. Meu joelho esbarra por ali e mais algumas páginas são revelas. Tem uma folha escrita, algo como... OC... OC? Eu tenho quase certeza que Luccino não me mostrou esse bilhete na janela nenhuma vez.
Tento pegá-lo, mas ele percebe e rapidamente o fecha.
"O quê?" Indago.
Ele faz a datilologia de T-E-R, seguida do sinal correspondente ao verbo.
"Ter o quê?" Retorno a pergunta, desta vez de um modo completo.
"Particular."
Levanta-se, deixando-me curioso para saber o que há escrito.
Digito no celular: Qual o sinal de ir embora?
Ele lê e me fita. Eu sou desarmado inteiro pelos seus olhos. Luccino agradece o chá e diz que vai para casa, apontando para a sua janela. Eu concordo. Se ele não quer falar, entendo. No fundo, acho que consegui ajudar-lhe com aquele abraço.
Ao deixar minha casa, subo correndo para o quarto. O que aconteceu hoje só me motiva a continuar aprendendo, apesar das limitações. Ele será meu norte nisso tudo. Continuo a olhar para lá, ansioso com sua chegada. Sei que ele fará o mesmo. As luzes se acendem e uma sombra incerta para em frente à cortina, abrindo-a segundos depois. Luccino respira com alívio. Acho que suas expressões doces vão voltar. Atento-me ao que irá escrever.
Quando me mostra, é grande a surpresa.
Não vou ensinar ir embora, por que eu nunca irei.
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A Décima Sinfonia
RomanceOtávio veio para uma grande cidade almejando cursar Letras. Leva uma vida tranquila e solitária, nada além do que estava acostumado no Vale do Café. Sua vizinhança amena ganha uma novidade após a chegada de Luccino e sua família. Com as janelas próx...