Levou uma semana e meia para ajeitar todas as papeladas relacionadas à atuação de Mariana como a nova intérprete. Convenci a turma toda a seguirmos com as aulas mesmo sem estar oficializado, afinal, todos queriam ficar de férias o quanto antes. Levamos o abaixo-assinado na secretaria e Luccino continuou com as aulas, desta vez ao lado de Mariana.
Hoje é uma quarta feira e ela veio sentar conosco no restaurante universitário. Randolfo mostra fotos de Sarita para a intérprete, que fica fascinada. Pelo que sei, Mariana é bi. É clara a faísca que acontece entre os dois. Tanto Randolfo quanto Sarita dominam os olhares de Mari.
Eu, é claro, só fico segurando vela. Na verdade, alia-se a isso o fato de eu estar triste, porque descobri que reprovei em Sintaxe. Vou ter que encarar o mesmo professor pela terceira vez, já que ele lecionou na turma em Sintaxe I.
"Eu preciso ir num dos seus shows, Randolfo."
"Ainda não pintou nada, mas quase todo final de semana me chamam em algum clube."
"Nossa, é tão incrível. No Vale não tem isso."
"Espera, Vale?" Entro em choque. "Você mora no Vale do Café?"
"Sim, por quê?"
"Eu sou de lá! Você conhece a minha mãe Nicoletta?"
"A dona Nicoletta? Conheço sim. E quem não conhece, né? Cidade pequena... Que coincidência legal, Otávio. E a gente só veio se conhecer agora, através do Luccino."
"Saudades da minha casa. Da minha família."
"Se quiser deixar a casa só pra mim, vou amar" Ela diz e solta um olhar de esguelha para Randolfo, que ruboriza ao perceber.
"Mariana! Não transforme a nossa casa num antro."
Ela ri, tomando um gole de suco para disfarçar. É neste momento que Luccino se aproxima e sinaliza algo para a amiga. Em seguida, ele cumprimenta o restante da mesa. Fico feliz de entender as saudações: Oi e tudo bem. Nestas semanas de aula, minha mão começa a se soltar bem devagar. O professor tem bastante cuidado com a turma e, além de ensinar os sinais, também aborda a comunidade e a cultura surda, desmistificando estigmas e abrindo a cabeça de alunos que antes reproduziam falas preconceituosas.
Aprendi um milhão de coisas nesse período. Eu, por exemplo, pensava que a libras fosse universal. Mas não: cada país tem sua língua de sinais. Há casos no Brasil de tribos indígenas que criaram outra língua de sinais própria. Enfim. Começo a entender que é complexa, como toda língua, possui sua gramática, suas regras, particularidades e deve ser respeitada e efetivada na sociedade por estar atrelada a um grupo, a uma cultura, a pessoas que, sobretudo, tem algo a dizer e querem dizer na sua língua.
Fico extremamente feliz com a notícia de que Mariana foi oficializada como a intérprete da turma. Há muita burocracia em relação a isso, mas a pressão do abaixo assinado fez com que a faculdade agilizasse, ainda mais com a ameaça de um processo.
"Feliz surdo intérprete bom!" Diz Luccino.
"Também", respondo. Minha cara, no entanto, me entrega.
"O quê?" Luccino percebe.
"Reprovar matéria faculdade. Triste."
"Lamento! Qual?"
Faço a datilologia.
"Sintaxe."
Luccino põe a mão no queixo, pensativo.
"Saber professor bom você."
"Bom! Querer Celular professor!"
Ele pede que eu espere enquanto digita algo no telefone. Em seguida, me passa uma mensagem no WhatsApp encaminhada com o número do tal professor, mas não olho a mensagem. Assim, fico até aliviado. Luccino olha para Mariana e Randolfo, que estão entretidos em tutoriais de maquiagem de drag queen. Ele pega em minhas mãos furtivamente e me olha.
"Obrigado. Ontem."
"De nada. Você ensinar ir embora agora?"
Sinto aquela energia intensa de novo.
"Ensinar..." Ele reflete sobre o que falar, mas se interrompe.
"O quê?" Insisto.
"Esquecer."
"Não, não, não. Falar já! Bobo!"
"Você saber bicicleta?"
Solto o ar. Eu pensava que iria falar outra coisa. Expectativas, Otávio, cuidado com elas. Mas, na verdade, só quer saber se sei andar de bicicleta. Resposta: não sei. Tentei muito quando criança, mas tive mais tombos que aprendizado. Acho que faz parte, mas fui uma criança tola que via as quedas como uma perseguição mundial das bicicletas contra mim.
"Não saber. Nada!"
Luccino fica chocado.
"Não estranho!" Me defendo. "Mariana, como fala metido?"
Mariana, abobalhada, me ensina o sinal.
"Você metido!"
Ele apenas ri.
"Você eu ensinar bicicleta?"
"Você querer?"
"Sim"
"Certo"
"Aceitar rápido", Ergo as sobrancelhas, irônico.
"Por que motivo ficar perto."
Ruborizo, desarmado com a resposta.
x-x-x
No sábado, é o dia da minha primeira aula particular de Sintaxe. Depois de tanta recomendação de Luccino, resolvi contratar o tal professor. Sim, por que estou exausto de Sintaxe e apenas o rigor alheio vai me fazer estudar direito. Além do mais, é uma motivação extra para que eu me concentre e não pense demais no dia de amanhã, quando irei começar as aulas de bicicleta com Luccino. Marcamos de nos encontrar naquela galeria indie em que o vi. Parece que foi chamado para um ensaio e, de lá, iremos juntos até algum lugar aberto e tranquilo.
Porém, lembro-me de quem é o professor. Abro a porta com a cara indisposta.
O mauricinho é meu professor.
"Oi, Otávio. Pronto pra aula?"
"Sim, sim. Vamos na cozinha. Deixa eu só dar comida pra Lídia."
Ele concorda e fica sozinho no cômodo enquanto vou dar comida para a laranjinha. Mariana saiu para correr de moto. Lídia descobriu uma arma contra Coronel: ela faz, literalmente, gato e sapato dele. Gosta que fique atrás dela, mas o despreza quando pede carinhos.
Quando volto para a cozinha, Camilo está folheando o material de libras que deixei na mesa. Ele está distraído e não me vê, mas repete os sinais de cores com fluência.
"Você sabe Libras, Camilo?"
Ele percebe a minha presença e fecha o material.
"Sei sim. Meu namorado me ensinou."
Assinto, sentando-me para iniciar a aula.
"Ah, perdão. Só um minuto."
Vejo a notificação de mensagem no seu telefone.
Luccino amor. Luccino amor? É o nome do contato. A realidade desaba sobre mim, enchendo-me de uma sensação de lamento e... Raiva? Luccino e Camilo são namorados.
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A Décima Sinfonia
RomanceOtávio veio para uma grande cidade almejando cursar Letras. Leva uma vida tranquila e solitária, nada além do que estava acostumado no Vale do Café. Sua vizinhança amena ganha uma novidade após a chegada de Luccino e sua família. Com as janelas próx...