Prólogo: Plantão Tranquilo

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- Me diz como é gostoso aquele médico na cama ou na mesa do consultório.

Irritava a Bruna pela oitava vez esta noite. A Nutricionista, colocou a prancheta no balcão e me olhou com seu típico olhar desdém.

- Não é de sua conta o que faço com meu noivo, na cama ou na mesa do consultório.

Tirava o pirulito da boca e engolia a saliva.

- Um dia te faço contar detalhe por detalhe.

- Vai procurar o que fazer enfermeira!

A vi saindo de minha frente rebolando, dando gargalhadas.

O plantão estava tranquilo, por isso que estávamos brincando às 2h da manhã. Como enfermeira chefe da emergência eu nem precisava estar aqui hoje, mas a Lidia estava passando mal e como não tinha muito o que fazer, fiquei no lugar dela. Além disso, seria uma boa topar com o Dr. Fernando e tirar um atraso com ele.

É sim, adoro pegar os médicos daqui e não ligo se são casados, se eles mesmos nem ligam. A Bruna disse que um dia me meterei em enrascadas, mas até lá, adoro os plantões noturnos calmos.

Bruna é casada com um dos donos do hospital, o Dr. Ítalo. Sei muito pouco da história dos dois, mas sei que a Bruna é HIV positiva e que o Dr Ítalo pagou um dobrado para conseguir conquistar o coração da bela morena. Formam um casal bonito. 

O grupo do hospital tem uma forte ligação com uma ONG coordenada pela pessoa que me fez estar aqui agora, a Djane.

Nos conhecemos na prisão quando fomos presas por causas de homens. Eu por ter me iludido e ser enganada ao transportar uma mala com cocaína, e ela por ser acusada falsamente de lavagem de dinheiro.

Nos três meses que ficamos juntas, viramos amigas, e mesmo após sua soltura, ela não se esqueceu de mim, me enviando cartas, fotos das suas filhas e outros mimos que poderiam chegar até a mim.

Quando sai da prisão quase dois anos depois, havia um motorista para me buscar, com passagem de avião para qualquer lugar que eu quisesse ir. Eram de minha mãe. Secretamente ela fez isso, sendo este um pedido para não voltar para casa.

Mas temei, voltei para o Rio. Não tive coragem de encarar logo minha família que ainda me considerava, como meus irmãos, assim pedi abrigo aos meus amigos de motos. Eles tinham uma oficina, que cresceu muito após vários eventos de sucesso, iniciados com o calendário.

Ah, o calendário, todos os meses são os meus favoritos, mas a imagem do dragão do Maumau e o café da manhã do Gustavo eram as minhas preferidas.

Passei um tempo com eles, mas senti que estava sendo inútil, além do ar carioca ser tóxico e as praias não mais convidativas.

Assim, aceitei o desafio da Djane de atuar como enfermeira no empreendimento, ao mesmo tempo que ensinava no curso técnico. Com o tempo fui gostando da gestão e virei coordenadora do curso , ao mesmo tempo que chefio o serviço de enfermagem da emergência e trauma. Não ligo, tenho muito tempo vago mesmo, não tenho uma família e mal consigo criar um cacto.

O último matei de sede. Pois é, quem consegue matar um cacto de sede? Euzinha, que consigo fazer um acesso central em hora crítica em menos de 15 segundos.

Aproveitei a calma e peguei uma pilha de provas para corrigir. Respirei fundo e estiquei as costas.

Vou encontrar uns erros aqui, uma vez que quem ministrou essa aula foi o marido da Djane, o Kalvin. Nesse dia não pude estar ao seu lado e com certeza ele não traduziu metade dos instrumentos, e os alunos, que copiam toda as vírgulas, devem ter feito "Ctrl+c" e "Ctrl+v" do que ele escreveu no "board".

Ele é lindo, muito gostoso , mas nos dias das aulas que ele não completou as traduções, preferia que ele ficasse como enfeite, quietinho no canto do laboratório, dando um alívio paisagístico na tensão dos alunos.

- Tô precisando relaxar – ouvi uma voz grossa à minha frente.

É muita areia para qualquer caminhão. Dr. Fernando, com seu sorriso largo, negro, com corpo maravilhoso moldado em academia é a tentação personificada em homem. Mas o que tem de gostoso, tem de safado. Está casado há quatro anos e trai a esposa sem o menor constrangimento. Mas pelo que soube, sua esposa também não é nenhuma santa, assim os dois vivem se iludindo.

Quem sou eu para me meter nisso como santa? Ah, não, não mesmo. Não sou sua única peguete por aqui, é só tomar cuidado.

Engoli a saliva e tirei o pirulito da boca.

- Não faz isso, Deny.

- Fazer o que, Nando? – passei a língua nos lábios.

Ele respirou fundo e olhou para os lados, com algumas poucas pessoas passando nos corredores em penumbra. Havia acompanhantes de pacientes e alguns poucos enfermeiros e auxiliares de enfermagem e limpeza.

- Consultório 2.

- Tenho provas para corrigir.

- O que tenho lá, é mais divertido. Dra. Enfermeira.... – ele disse baixinho em meu ouvido.

Puta que pariu! Adeus sanidade...

Ah, o Dra. não é ironia, eu fiz mesmo o doutorado na UFRJ, sobre traumas e estratégias de gerenciamento de traumas na rede pública. Isso tudo antes de embarcar para a loucura na Europa.

Eu o vi saindo e fiquei em dúvida, continuo corrigindo as provas ou vou dar a aliviada que eu e o Dr. precisamos?

O Coração de DeniseOnde histórias criam vida. Descubra agora