Raízes

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Acordei na manhã seguinte me sentindo extremamente relaxada, tão leve quanto uma pluma, tenho que me lembrar de agradecer a vitória posteriormente, o chá realmente me fez bem

Trabalhar num escritório nunca foi meu sonho, assim como newt de animais fantásticos, viver sob uma mesa rodeada de papéis era meu pior pesadelo. Eu não posso dizer que tive muitas opções, assim que terminei a escola técnica continuei na empresa em que fazia estágio em logística e por pressão dos meus pais nunca mais saí, mesmo que esse tenha sido meu desejo diário nos últimos 4 anos.

Meu sonho era viver de música, aos 10 anos eu já dominava o violão e arranhava no teclado, mas nunca tive incentivos que não fossem a pressão da conta de luz e do aluguel no final do mês.

Minha família inteira era de Araguaína e moramos por lá até meus 16 anos, quando mamãe se separou do meu pai e quis mudar de vida vindo pra cidade grande, obviamente ela desistiu um ano depois e voltou pro Tocantins. Depois de muita insistência me deixou morar com rafael, meu irmão mais velho, mas só depois de dois anos vim morar sozinha nesse apartamento perto do estágio, que é meu atual emprego, isso porque meu irmão se mudou pra campinas com a esposa.

Se me perguntassem há 10 anos como eu estaria hoje, a Ana de 14 anos de idade certamente diria que viajando pelos palco de uma turnê mundial... eu costumava ser esse tipo de sonhadora, a que pensa longe... hoje eu nem sei como foi que eu me perdi de mim.

- Ana me passa por favor o ramal do terceiro andar acho que perdi aqui. Aninha? ANA CLARA! - Manu gritou me tirando dos meus pensamentos

- oi?

- o ramal do 3° você lembra?

- 6473, me perdoa é que eu tava viajando aqui... - não disfarcei o descontentamento

- viajando pra onde? Tá tudo bem - neguei com a cabeça - entendi...

- eu não to bem Manu, acho que eu nunca soube como é ser feliz de verdade

- ah não Ana, quantas vezes eu já te falei pra largar esse maldito emprego e ir atrás do teu sonho?

- não é tão simples assim, Manu você sabe... tem a minha mãe, tem as minhas contas pra pagar se eu largo esse emprego e não der certo? Tá cheio de gente cantando por aí nesse mundo  eu vou ser só mais uma.

- cheio de gente mas nenhuma delas é você! Nenhuma tem seu talento, essas coisas são únicas, o seu nasceu contigo.

- não sei, quem sabe um dia eu tome coragem de jogar tudo pra cima

- você me diz isso há 2 anos, Ana clara! Só não disse mais porque não me conhecia antes - revirei o olho em resposta - ei, se nada der certo eu te ajudo a catar -ri de canto, Manu era uma figura

E no fundo nós duas sabíamos que era  verdade, Manuela estava certa, eu procrastino os meu objetivos há anos por puro medo do incerto

Cheguei em casa por volta de umas 20:30, tudo estava em seu perfeito lugar, a tinta descascando no canto da parede onde fica a janela, o frio de São Paulo entrando pelo basculante da cozinha... eu estava em casa.
Reparei que haviam novas correspondências no chão e devem ter se espalhado quando abri a porta, depois do banho eu vejo isso.

Catei os envelopes sem vontade alguma, não aguento mais ter só contas pra pagar, água, IPTU, luz... um envelope em branco, conta de gás... só trivialidades, a não ser por esse envelope sem remetente.
Abri e já fui quase caindo pra trás.
AH MEU DEUSSS
SÃO INGRESSOS PRO SHOW DA MALLU!
De onde saiu isso pelo amor de Deus? eu até me aventurei num sorteio pelo Instagram mas não me lembro de ter sido contatada como ganhadora.
Vasculhei o envelope procurando um remetente e finalmente achei um post it azul água

"Se tu já canta bem pra suas paredes - e pras minhas também - imagine cara a cara com malluzinha.
Obrigada pela correspondência e pelo açúcar.
vitória"

Eu estava boquiaberta, como assim eu conheço minha vizinha num dia e ela me da ingressos pro show da minha ídola no outro? Vitória só pode ser louca eu tenho que ir lá debater com ela sobre isso é gentileza e aleatoriedade demais de um dia pro outro. Acabei de perceber que vitória é especialista nisso, ser aleatória.

Saí de pijama mesmo e toquei a campainha da porta da frente

Um toque
Dois toques
Três toques
Nenhuma resposta

Acho que não tem ninguém em casa, ela deve estar dormindo, ou acompanhada, sei lá. Pensei em mandar uma mensagem, mas não tinha seu número, então resolvi responder do mesmo jeito: com um bilhete.

"Então além de especialista em ervas -lícitas até onde eu sei- você também é a pessoa aleatória que manda ingressos pro show do cantor favorito das pessoas? Vitória, fale a verdade, você é minha fada madrinha?
Obrigada, me retorna nesse número.
Ana"
(11) 9600-5555

Enfiei o bilhete por debaixo da porta e diferente da correspondência do outro dia ele entrou facilmente, ela deve ter tirado o tapete ou qualquer que tenha sido a coisa que bloqueava a abertura por debaixo da porta.

Voltei pra minha casinha praticamente saltitando em direção à cozinha ansiando comer as coxinhas que comprei na padaria da esquina, se não são as melhores de São Paulo são pelo menos as melhores do meu bairro. Se a mãe visse isso me daria uma bronca enorme por não me alimentar bem, mas eu juro que como legumes toda vez que ela me liga.

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00:15
Cheguei em casa só o pó - como de costume - pra quem vê de fora trabalhar num estúdio de tv parece só glamour e conhecer famosos mas infelizmente é muito mais complicado e cansativo. Trabalho na redação de um programa de entretenimento desde os últimos semestres da faculdade de jornalismo e são de lá a maioria dos meus amigos, os outros poucos que tenho são os da faculdade.

Vim morar em São Paulo já velha, tinha  acabado de fazer 18 e trouxe comigo os sonhos na mala que praticamente todo mundo que cai de paraquedas nessa cidade deve ter, eu queria independência, um bom emprego e novas oportunidades que provavelmente nunca teria na cidade onde eu morava: Serra do Carmo, interior do interior do Tocantins.
Tendo uma mãe apegadíssima, ser a menina da cidade não foi nada fácil. Principalmente porque mamãe já estava sofrendo da síndrome do ninho vazio depois que Sabra, minha irmã mais velha, foi morar em Portugal pra cursar direito. Resolvemos isso com uma reunião anual no Natal, que é quando todo mundo chora e se abraça falando de como sentimos saudades umas das outras. Já era de se esperar de uma família com praticamente só mulheres e que têm hormônios de sobra pra se emocionar.

Depois do meu merecido banho, percebi que não comi quase nada o dia todo e ao invés de dormir dei meia volta em direção a minha cozinha pra preparar um sanduíche de geleia de amora, minha preferida. Só então me dei conta de que amanhã - que no caso é hoje - é dia 10 e eu não abri nenhuma das contas que eu tenho que pagar.

- ainda bem que existe a opção de pagar essas coisas online - peguei os envelopes que coloquei na mesa e comecei a pagar os boletos, só então percebi um papel rosa salmão no meio deles

"Então além de especialista em ervas -lícitas até onde eu sei- você também é a pessoa aleatória que manda ingressos pro show do cantor favorito das pessoas? Vitória, fale a verdade, você é minha fada madrinha?
Obrigada, me retorna nesse número, Ana" - li em voz alta

- não acredito que estou prestes a fazer amizades nesse prédio que não são com as crianças nem os velhinhos!

Resolvi que mandaria uma mensagem pela manhã explicando o motivo e como consegui os convites. pra ser sincera desde ontem eu queria ter pedido o número de Ana clara e ainda bem que ela facilitou meu trabalho de procurar no grupo de WhatsApp do condomínio.

Salvei o contato como "Naclara 🍬🏢" e fui dormir fazendo uma nota mental de não esquecer de falar com ela assim que acordasse.

Bem-me-leveOnde histórias criam vida. Descubra agora