Fantasmas bebem vinho de cobra

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Charlie era um demônio. Não o pior nem o mais assustador, mas mesmo assim, um demônio.

Como era de se esperar, a sua vida não era a coisa mais abençoada. Muito pelo contrário, ele tinha dezenas de maldições espreitando seu ser, uma delas sendo a sua própria existência, que por si só já era desgraça o suficiente para uma pessoa sozinha suportar. Charlie era viciado em Tetris, doramas coreanos e realitys culinários, o que gerava sofrimento suficiente para também ser considerado uma maldição. Além de tudo isso, ele estava em cárcere no Vazio faz mais de duas décadas, e o Vazio estava longe de ser um dos lugares mais agradáveis para se morar. Era até um pouco traumatizante.

Mas não era como se ele estivesse muito abalado com isso. O demônio tinha dado motivos suficientes para que retirassem quase todos os seus poderes e o condenassem à viver ali, e apesar de gerar bastante angústia, o lugar ao menos era silencioso e possuía uma televisão, portanto não era difícil de se sobreviver. Charlie nunca foi o tipo de pessoa que vê o lado bom da vida, mas ele era bem adaptável a tragédias e confortável com situações incômodas, já que tudo sempre lhe foi uma situação incômoda. Além disso, do que ele podia reclamar? Enquanto One Piece continuasse sendo lançado, não haveria motivos para se chatear com a vida que ele levava.

E uma coisa que todo mundo sabe é que One Piece é infinito.

Enquanto o estado mental de Charlie era narrado, ele estava agachado debaixo do balcão do bar que mantinha com a força do ódio mesmo que não fosse lucrativo, já que no Vazio não se havia clientes além de almas penadas que mal se lembravam de existir direito e que com certeza não se interessariam em tomar uma cerveja. Com o gameboy em mãos e um cigarro na boca, vestido com a camisa esfarrapada e estampada com a cara da Hatsune Miku, bermuda caqui, chinelos e meia, Charlie quase parecia um adolescente drogado com muito mal gosto para roupas, e não um empreendedor falido com quase 900 anos.

Então, algo aconteceu.

O único som até aquele momento naquele ambiente abafado, úmido e sujo, era o do jogo em que ele já estava com um score considerável e de seus próprios murmúrios de indignação contra o botão quase solto do gameboy. Mas de repente, Charlie ouviu um barulho estranho vindo de trás da porta ao lado das estantes de bebidas, a que dava para as escadas que iam para o andar de cima e para o lugar onde ficava as plantas.

Nenhuma alma viva costumava ir ali, literalmente, então o barulho foi algo incomum de ser ouvido. Quando alguma alma vagando pelo Limbo ocasionalmente chegava naquele lugar deprimente, sempre era pela porta da frente, e nunca pela porta que dava para dentro da casa em si. De toda forma o demônio ignorou, pois não se sentia muito abalado com a estranheza da situação e estava bem perto de bater seu próprio recorde, o que obviamente era algo mais importante do que ir verificar sons estranhos dentro de casa.

Menos de um minuto depois de ignorar a possível existência de algum invasor em sua residência, Charlie ouviu um PLIM e um barulho de porta de elevador se abrindo, e isso foi absurdo o suficiente para que desprendesse a atenção da tela por um milissegundo. Ele não tinha um elevador. Com toda a certeza do mundo Charlie não tinha um elevador em casa, mas mesmo assim, um elevador que não estava ali antes e nem se estivesse seria possível devido a arquitetura daquela porcaria, jazia no lugar de sua porta de madeira, como se não fosse fisicamente impossível a sua existência.

O primeiro que saiu do estranho compartimento de ferro era um menino de 1,55 de altura, que tinha o cabelo castanho claro encaracolado e raspado de um lado como qualquer adolescente descolado faria, a pele bronzeada e os olhos claros de cor violeta rodeados por olheiras profundas. Ele era inquieto como se estivesse indo tirar o pai da forca, e estava completamente enrolado em um casaco de pelos, como se morasse sei lá, em Curitiba ou no polo norte. Parecia ter uns dez anos de início, mas se fosse analisado com cuidado era um tanto óbvio que tinha uns vinte, pela barba meio rala na cara e a expressão deprimida que apenas um jovem adulto consegue ter. Seu nome era tão esquisito quanto sua aparência: Ulukie.

Demônios, maldições, e todas essas coisas que jovens gostam.Onde histórias criam vida. Descubra agora