O NONO-IRMÃO ALEC estava empolgado com a viagem, e até mesmo lustrara com graxa as botas antes de partirem. Os nove membros da Companhia estavam prontos para a missão logo no dia seguinte, e, na manhã daquela terça-feira, saíram da cidade logo cedo, cada um em sua respectiva montaria... menos o Iniciado.
Alec, no entanto, ficara incumbido de ser o carroceiro. O rapaz resmungara um dicionário de palavrões, mas teve de engoli-los, cada um, em silêncio.
O dia começara com chuva. Primeiro-Irmão Bryston achou aquilo um mau presságio.
— Começar uma jornada com os prantos do Único é mau agouro — reclamou ele para o Segundo-Irmão. Sua barba encharcava-se de água gelada.
— Nem sempre — retrucou Roynard, catando com a língua algumas gotas. — Pode ser boa coisa também. Há tempos, não nos era avisado de uma nova ruína.
E era verdade. A maioria das ruínas ainda, por incrível que pareça, estavam quase de pé, e os altos castelos daquela época eram erigidos no topo de montes, lugares nem um tanto discretos.
— Campo-Verde não passa de um monte de colinas, e há musgo por todos os cantos. É um lugar bom para as cabras, e é sempre úmido também. Dizem que lá chove todos os dias — comentou o Quarto-Irmão Dewey, o ruivo. — E dizem também que a bruma cobre toda a região. Não me admira que não tenham encontrado nada em setecentos anos.
— Que você esteja certo, Quarto-Irmão — Bryston olhou para o céu, escuro feito chumbo.
Roynard olhou para trás, viu que o novato parecia um tanto aborrecido. Diminuiu a marcha do cavalo.
— Diga, rapaz. Ansioso?
— Estou sim, senhor — respondeu Alec, num misto de decepção e alegria.
— A primeira expedição é que nem comer uma boceta pela primeira vez, não é, Irmão Lauren? — Ele ergueu os olhos para o louro, que ia do outro lado da estrada, falava alto para que a voz se sobressaísse aos trovões. — Vai chegar lá e tremer como uma menininha, não vai saber o que fazer e nem em que buraco entrar.
Lauren gargalhou.
Alec sentiu as bochechas queimarem, odiava ser o novato, mas, ao mesmo tempo, estava empolgado. Mal havia se tornado um membro da Ordem, e já haviam lhe dado uma missão. Era o momento perfeito.
— O que acham que vamos encontrar lá? — perguntou o Nono-Irmão para quem pudesse responder.
— Na maioria das vezes, é um monte de nada — disse Roynard. — Não querendo te desapontar, garoto, mas não se é visto um vampiro, nem vivo e nem morto, faz quinhentos e setenta anos. No máximo, um sarcófago vazio. Os filhos da puta já viraram pó há muito tempo.
— Mas pode ter ouro — comentou Sétimo-Irmão Evric, o de cabelos raspados, em silêncio até então. — A Companhia do Irmão Murson encontrou um bocado de prata e lingotes de ouro não tem quatro anos, lá em Pedrarrio.
— Murson e seus homens gastaram seus dezoito por cento de espólios em putas e cerveja — Roynard relembrou.
— E existe coisa melhor para se gastar dinheiro, Irmão? — Lauren riu. Alec o acompanhou com um sorriso.
Vagaram sob a chuva por quase duas horas, e quando o sol finalmente saiu, andaram por mais cinco antes que parassem para o almoço. Instalaram-se numa pequena vila às margens do rio Dejo, e comeram lúcio numa de suas hospedarias.
Nono-Irmão Alec mal tivera tempo para admirar a espada, sentou-se numa das mesas e a pôs sobre a tábua. Velas e archotes iluminavam as paredes de carvalho, e o Iniciado esfregou os dedos sobre a prata da lâmina, principalmente sobre as inscrições ao lado do guarda-mão.
Ti sicat it nas una suma.
— Tu és um, assim como nós... — murmurou ele, citando o lema da Ordem. Depois, virou a lâmina e dedilhou a inscrição do outro lado, que dizia: ALEC. Uma chama no coração do Nono-Irmão subiu ao ler o seu nome na espada, e, naquele momento, realmente se sentiu um membro dos Nove-Raios.
— O que seria de um homem sem uma espada e seu pau, não é? — Lauren se sentou ao lado do rapaz, trazendo consigo um prato com peixe cozido e um caneco de cerveja. — Não vai comer nada?
— Vou sim — respondeu Alec. — É só que... nem tive tempo para admirá-la.
O Sexto-Irmão largou o peixe e a cerveja de lado, pediu a espada emprestada. Alec assentiu, e Irmão Lauren a manejou com delicadeza. Enquanto mastigava a carne a fim de não se machucar com algum espinho, Lauren esfregou os dedos na lâmina, admirou o cabo e depois passou o dedo sobre o botão, cujo símbolo era um sol talhado em mármore escuro.
Catou um espinho da boca e disse:
— Parabéns, Irmão, é um belo trabalho. É certo que os melhores ferreiros trabalham para a Igreja. — Tornou a devolvê-la. Alec a escondeu na bainha. — Agora, vamos comer. Taverneiro! — berrou ele, torcendo o pescoço para a bancada. — Traga ao meu Irmão aqui seu melhor salmão!
O taverneiro assentiu e gritou para alguém nos fundos da estalagem.
— Acha que encontraremos alguma coisa lá? — perguntou o Nono-Irmão.
Lauren mastigou mais um pedaço do peixe, depois tomou um gole de cerveja.
— Olha — balançou a cabeça —, é melhor você acreditar que não. Na maioria das vezes, só encontramos pergaminhos carcomidos, e nem sequer em língua franca.
— Você sabe alguma coisa de sâncio? — indagou Alec, aproximando-se do louro. Sâncio, no entanto, como se referia ele, era a chamada língua morta dos vampiros.
— Só os Irmãos-da-Torre possuem acesso a esse tipo de conhecimento — esclareceu Lauren. — Nem mesmo Bryston sabe mais que meia dúzia de palavras em sâncio.
— O que acha que escondem de nós?
Lauren deu de ombros.
— Conhecimento antigo, provavelmente. Já viu açonegro?
— Só em gravuras. É real?
— Primeiro-Irmão Bryston diz que sim, que viu uma espada desse tipo uma vez. Conta ele que era de um aço tão duro e tão negro, que nem o fogo refletia na lâmina.
Alec sentiu um arrepio.
— Será verdade também que é capaz de fazer o vento sangrar? — perguntou o novato com brilho nos olhos.
O Sexto-Irmão sorveu mais um gole.
— Não se sabe, mas não pergunte nada a Bryston. — Aproximou-se da orelha de Alec e murmurou: — Nós devemos manter silêncio sobre essas coisas. A Igreja acredita que é melhor assim... que evita o temor.
O salmão de Alec chegou, e o rapaz pagou ao taverneiro dois vinténs de cobre.
Naquele dia, apesar disso, almoçaram bem, e não mais pegaram chuva no caminho. A noite fora tranquila também, e o Iniciado passou a madrugada sonhando com o que poderia encontrar nas ruínas do antigo castelo... sonhou com velhos sarcófagos, com moedas de ouro tão redondas quanto douradas; sonhou também com açonegro, e que fazia o vento assoviar sangue ao brandir da lâmina.
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Torneio de Sangue
Fantasy+18| ATENÇÃO: HISTÓRIA COMPLETA A ORDEM DOS Nove-Raios é a forma mais segura que a Igreja encontrou para resgatar artefatos de eras passadas. Na época em que os vampiros ainda reinavam sobre o mundo, o clero teve de tomar uma decisão: originar uma g...