EPÍLOGO

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O PRIOR ESGUEIROU-SE para enxergar o que havia lá na frente. A égua já parecia cansada, relinchava por um pouco de paz. As tralhas nos alforjes balançavam e faziam um barulho engraçado, quem o visse de longe pensaria se tratar de um latoeiro, e não um homem daquela importância.

O falcão pendurado na gaiola eriçava os penachos, escondia a cabeça, aplumava-se por detrás das asas. A viagem fora um pouco longa, admitiu, longa até demais para um velho como ele. No entanto, na patente que tinha, não podia se deixar abater pela dor nas virilhas.

O olhar de confusão era comum, estava acostumado. Muitos coçavam a cabeça e remexiam o nariz feito coelhos quando o viam, pois nunca viram um homem assim. Quem era ele, afinal? Bom, isso não me fora completamente revelado, talvez nunca seja. Sabe-se apenas que ele é um homem da Igreja. Dava para se ver o sol estampado na brafoneira, o astro de nove raios costurado no ombro direito. Vestia-se de preto também, um tabardo de couro fervido, de boa qualidade. De longe diriam ser um Irmão. Porém não era bem assim.

Nas costas lhe descia um longo manto negro preso por dois broches de um dourado desbotado. Sua gola era alta, e tinha-se a impressão de que o homem se escondia de olhares atentos. A lâmina, entretanto, via-se pendurada na cintura, exibida com orgulho, seu cabo amarronzado, cor de argila, beirava ao vermelho. Descansava-a sempre na bainha, e quase que nunca a tirava de lá.

Por detrás da cabeça uma fita segurava um coque grisalho, grande e bem enrolado. A barba, um tanto encardida, de veios arruçados, descia num cavanhaque. Além de tudo, o sujeito ainda costurava um olhar belicoso, talvez entregado pelas suíças, ou quem sabe pelos olhos pequenos, aguçados e cheios de rugas.

Parou diante uma taberna. Descansou a égua negra num toco, deu-a de beber e também uma maçã. Afagou sua crina. Estava calor, e o sol não fazia bem para os pelos do animal.

Respingou um pouco de lama quando desmontou, resmungou ao ver as galochas embarradas. Havia não muito chovido, e o mormaço fazia suor escorrer pela testa do velho.

O clima na bodega era soturno, típica das tabernas no fim daquele mundo.

– Procuro um homem – disse o Prior. – Nove, na verdade.

O taberneiro ergueu o cenho.

– Quem diabos sai por aí procurando nove homens? – o gordo esticou uma toalha no ombro. – Está buscando uma suruba? Se beber alguma coisa, quem sabe eu lhe diga alguma coisa.

O prior se sentou, guardou um gemido para si... ah, como era bom descansar a bunda num banco. Por mais desmazelado que fosse, ainda sim era muito mais agradável que o lombo de uma égua.

– Aceito uma cerveja. Agora diga-me o que sabe. Procuro uma Companhia. Nove Irmãos da Igreja.

– Num sei de Companhia nenhuma, não – o taberneiro deu de ombros. – Nem de gente de preto também.

O velho bufou.

– Alguém que saiba?

– Bom... – começou ele, entregando ao Prior um caneco. – Tem uns dias que viram um dos seus por aí, lá em Campina-Baixa. Ele tava sozinho, foi o que disseram.

Sozinho?

– Sim, sozinho. Por quê?

Um Irmão desgarrado?

– Como ele era? – perguntou o Prior.

O taberneiro pareceu pensar.

– Como ele era? – repetiu o velho, sorvendo de um gole. Espuma sujou seu bigode.

– Era feio – o gordo assentiu. – Art que me disse, sabe. Ele conhece tudo sobre tudo por essas bandas. Disse que o cara tinha uma cara rasgada, e que tinha pressa.

Rasgada?

– Isso, tipo um machucado, uma cicatriz. Sei lá.

Roynard...

– E quando ele foi visto pela última vez?

– Tem uns dias, viu? Acho que mais de semana, senhor.

– Alguma pista de onde ele possa estar agora?

O homem deu de ombros outra vez, secou a testa com a toalha.

– Aí você tem que ver com o Art, o cara parece o Único, sabe de tudo.

– Não blasfeme – o velho se ergueu, era alto feito um poste, segurou um arroto com a mão. – Onde encontro esse Art?

– Só seguir o riacho – ele apontou para o oeste. – Siga o curso até achar uma cabana, tem um píer e tudo, coisa chique. Vai encontrar ele lá, pescando.

O Prior assentiu, fez menção de ir embora.

– Porra, não dou cerveja de graça! – rosnou o taberneiro.

O velho tossiu, deu ao homem um vintém de cobre pela cerveja e um de prata pela informação. O gordo lhe agradeceu.

Fez o que o homem disse. Seguiu o riacho, que auriverde, brilhava ao calor da tarde. Até mesmo sentiu vontade de tomar um banho naquelas águas. Não seria má ideia... Não fosse o trabalho que viera fazer ali. Levara catorze dias para alcançar aquelas vilas, indo de porta em porta, fazendo trabalho de formiga. Há quase um mês a Companhia de Bryston havia partido de Campo-Verde; um falcão fora enviado, alertando de sua partida. Até agora nada. Uma grande quantidade também havia sido informada a Igreja, pela letra do próprio Primeiro-Irmão.

Não sabia o que havia acontecido, mas tinha uma ideia... os desgraçados devem ter roubado a porra toda, depois sumiram do mapa. Não é a primeira vez. Foi o que pensou o Prior. Não muito se é revelado a respeito da natureza dos Priores, mas sabe-se que há apenas nove no mundo todo, e que, diferente do resto, não são uma Companhia. São como ursos, astutos, vorazes e solitários.

O velho admitia um pouco de saudades também, tinha uns belos anos não catava alguns Irmãos pelas orelhas... e a melhor parte era cortá-las. Sim, ele as cortava, e com gosto. Não as colecionava, considerava esquisitice demais, mas tinha vontade de pendurá-las um dia, montar um colar de orelhas. Por que não?

Assim como o gordo havia dito, o píer e a cabanaestavam lá. O Prior atravessou a água com a égua, a correnteza não passava dosjoelhos do animal.

Torneio de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora