I. O MENDIGO DE CAMPINA BAIXA

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AQUELE QUE SE vestia de cinza atravessou os arames com certa dificuldade. A ponta do manto prendeu num dos fiapos de metal, e o homem, aferventado, rasgou boa parte do tecido. O sujeito rogou uma praga entredentes, e, em seguida, afundou as botas no charco.

Era tão cedo, que ainda podia se dizer que era madrugada. O sol recém-começara a se esgueirar por entre as colinas, até mesmo os galos ainda dormiam. Uma bruma atapetava a campina adiante, e o homem andou agachado, torcendo para que nenhum camponês o visse por ali.

Vagou por entre os campos, o aroma do matagal recendia a esterco, moscas revoavam ao redor. Avistou uma vaca alvacenta. O animal pastava logo agora, espantava as varejeiras com a cauda. Era um bicho débil, as costelas marcavam na pele, porém aquilo não era problema. Afinal, não era a carne e nem o couro que lhe interessavam.

O sujeito ergueu a carapuça. Não era à toa que a vestia m volta da cabeça. Qualquer um que o pudesse ver naquele instante, pularia de susto, faria cara de nojo, de repulsa, levaria a mão ao cabo da espada sem nem hesitar. Porém, para seu agrado, não havia testemunha.

Farejou o animal, encostou o nariz em seu pescoço, acalmou-a com um afago. Em seguida, deslizou a língua pela garganta da vaca.

É aqui mesmo.

Desembainhou da cintura uma adaga de curva delgada. Olhou para os lados, certificou-se de que estava a sós novamente. Agarrou a bichinha pela orelha e lhe rasgou um corte na jugular. O sangue escorreu grosso, verteu aos litros. A vaca bambeou, não teve forças para um último mugido. O homem que vestia cinza tirou de uma tira no peito um odre de couro fervido, esperou o líquido cevar o recipiente.

Depois, deliciou-se com as sobras e se lambuzou com a seiva, chupou-a até sobrar um pedaço morto de couro e ossos. Finalizou com um arroto, limpou a boca e os fios ralos, falhados e brancos da barba com as costas da mão. Partiu pelo caminho oposto, as botas afundando na bosta e na lama. Desta vez, não prendeu a capa na cerca, e pegou a estrada que levava a uma das vilas. Talvez houvesse trabalho para lá.

Seguiu a estrada esperando encontrar um rumo. Acima, nos choupos, nos pinheiros e nas macieiras, trova-soltas cantavam o início da manhã. No entanto, logo o sol começara a bater firme sobre a pele do sujeito, que tivera de cobrir a careca com a carapuça. Caminhava com os olhos sempre para baixo, a luz o feria nas vistas. Preferia sempre as andanças noturnas, mas, à noite, era difícil de conseguir trabalho, pois os aldeões dormiam, e os que não dormiam bebiam ou trepavam.

Era uma vida difícil.

Para aqueles que o vissem de longe, não passava de um mendicante, um andarilho. Havia vários deles espalhados pelo reino, é verdade, a maioria pecadores do Único, ou exilados da Igreja. Não eram tempos fáceis. Era costumeiro o sumiço de vagantes; alguns deles, vira e mexe, apareciam degolados na beira das estradas, humilhados e cobertos de pó.

Chegou até uma encruzilhada, onde se forçou a erguer os olhos. A placa caída, comida por cupins, ainda tinha um pouco de tinta escrita na madeira, e nela dizia: Campina-Baixa.

Campina-Baixa era uma região do trigo e do arroz, de boa cerveja de camponês. Era fácil conseguir trabalho nessas terras, e, àquela altura, o sujeito de cinza sabia que encontraria algum corno numa destas vilas. O homem gostava de cornos. Homens com chifres lhe traziam dinheiro.

Era ele o algoz dos covardes e das putas, e cobrava sempre não mais que três moedas para uma mulher e cinco por um homem — seis, se ele fosse forte. O sujeito não sabia de muita coisa, mas, de uma, ele tinha certeza: havia muitos covardes no mundo; covardes, bastardos e putas. Sendo assim, para matar uma puta, não era problema, só bastava uma mão no pescoço e um aperto firme. Os covardes, no entanto, davam um pouco mais de trabalho, pois esses gostavam de fugir, e o homem de cinza não gostava de correr.

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