Capítulo 3 - Medo Bobo

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— Posso me sentar aqui, amiguinha?

Eu ergo os olhos. Paula está parada na minha frente, apontando para uma cadeira ao meu lado na mesa da cozinha.

— Pode, claro — digo, e puxo a cadeira para perto de mim.

Ela se senta. Estamos sozinhas nessa parte da casa - os outros estão malhando, terminando de fazer seus Raio X e pegando sol.

— Por que você está aqui sozinha?

— Só vim tomar água — eu respondo, e balanço o copo na minha mão. Eu oculto o fato de minha garganta estar ardendo desde ontem.

— Ah — ela diz. — Eu não te achava em lugar nenhum lá fora.

Me remexo na cadeira, sem deixar de sorrir por dentro ao imaginar Paula me procurando pela casa, mas trato de espantar o pensamento com a mesma rapidez que ele surgiu.

— Pode ir lá fora, eu já vou — eu digo.

— Não, eu fico aqui com você. — Ela aponta para o copo de água. — Tá cheio ainda.

Eu pego o copo e olho para dentro dele.

— É que eu enrolo pra tomar água. Não gosto.

Paula ergue uma sobrancelha.

— Mas tem que tomar! Tá doida, Hariany?

Eu levo um susto quando ela pronuncia meu nome e derramo um pouco da água em cima da mesa. Paula me encara com seus enormes olhos azuis, e as bochechas dela coram.

— Ah, merda! Seu nome não é Hariany? — Ela começa a secar a água com a blusa. —Desculpa, sou péssima com nomes.

Eu rio.

— Não, é Hariany mesmo. Mas você falando Hariany parece minha mãe quando briga comigo.

— Quer que eu te chame do que, então?

Eu dou de ombros.

— Pode me chamar de Hari.

— Tá bom, Hari — ela pronuncia exageradamente as sílabas do meu nome e ri. A risada dela é o tipo de som que dá vontade de ouvir o tempo inteiro.

— Oxe, já passamos um dia inteiro juntas e você ainda não tinha certeza do meu nome? — eu pergunto.

Suas bochechas ficam ainda mais vermelhas.

— É que até agora eu só tinha te chamado de amiguinha, uai. Fiquei com medo de ter me confundido — ela diz. — E nem sei se você quer ser minha amiguinha.

Meu coração se encolhe com o que ela diz, e eu me assusto comigo mesma. Como é possível eu sentir tanto afeto por uma garota que conheci ontem? Vai com calma, Hariany.

— Lógico que quero, né — eu falo, e me interrompo com um acesso de tosse.

Ela estende o copo de água para mim.

— Termina logo.

Eu obedeço e faço um esforço para terminar o copo de água. Minha garganta está coçando.

— Você acha que estou muito rouca? — eu pergunto. — Sei lá, minha garganta está doendo um pouco.

— Olha, sua voz está igual a ontem, mas eu te conheci ontem — ela diz.

Porra, Hariany. Ela vai achar que sou idiota.

— Ai, é verdade — eu falo, e ela cai na gargalhada. Eu começo a rir também, mas acabo me engasgando e caindo em outro acesso de tosse, o que faz Paula rir mais ainda.

A gente ri por uns longos segundos, segundos que parecem infinitos. Quando eu finalmente paro para puxar o ar, Diego entra na cozinha.

— O que vocês estão fazendo aí sozinhas? — ele pergunta.

— Estou me certificando que Hari vai tomar esse copo de água inteiro — Paula diz, e me olha como se eu fosse uma criança de cinco anos.

— Então termina logo — Diego fala. — Vamos começar o Big Voice Brasil.

Eu dou o último gole na água e me levanto para jogar o copo na pia. Paula se levanta também, e nós seguimos Diego pelo jardim.
Todos estão juntos lá fora, reunidos em uma rodinha em volta de três cadeiras.

— Venham, meninas! — Carol grita. Nós nos juntamos a ela e a Isabella.

Diego se senta numa das cadeiras; Maycon e Gustavo o acompanham.

— Quem vai começar? — Maycon pergunta.

Por algum motivo que nunca vou compreender, todo mundo olha para mim.

— Vai, Hari! — Hana grita.

— Ai gente, por que eu? — eu pergunto.

— Vai, amiguinha —Paula diz. Ela apoia uma mão encorajadora no meu ombro, e eu engulo em seco.

— Só vou se você for — digo.

Ela se levanta e me puxa pela mão, enquanto todo mundo nos aplaude. Nós pegamos cabos de vassoura para fazer de microfone.
Eu abro a boca para perguntar que música a gente vai cantar, mas Paula começa:

— Piririn, piririn, piririn, alguém ligou pra mim. Piririn, piririn, piririn, alguém ligou pra mim. Quem é?

Ela mesma cai na gargalhada com a própria voz. Eu entro na onda, e digo:

— Sou eu Bola de Fogo, o calor tá de matar. Vai ser na praia da Barra que uma moda eu vou lançar.

— Vai me enterrar na areia? — Paula canta.

— Não não, vou atolar.

— Vai me enterrar na areia?

— Não não, vou atolar.

— Tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha, tô ficando atoladinha — ela grita, e começa a rebolar do meu lado.

— Calma,calma foguentinha — eu falo com uma voz grossa, e nós começamos a rir de novo. Por um momento, parece que não tem ninguém mais naquela casa. Só nós duas. No nosso próprio mundinho.

De repente, Paula me abraça. É tão inesperado que por um momento eu congelo, mas então retribuo o abraço, e um sentimento de segurança me invade. Não sei exatamente o que está acontecendo, mas sei que é especial.

— Vocês vão perder mesmo esses talentos? — Paula pergunta para Maycon, Diego e Gustavo, que continuam com as cadeiras viradas de costas para a gente.

— Vixi, não conseguimos conquistar — eu digo para Paula.

— A gente não conquistou os jurados, mas conquistou o Brasil — ela diz, e dá uma piscadinha.

— Você acha, é?

— Tenho certeza — ela diz. — Vamos cantar outra!

E então ela começa a puxar Medo Bobo. É uma das minhas músicas preferidas. Eu fecho os olhos e começo a cantar, e nossas vozes se misturam na música.

Ah, esse tom de voz eu reconheço
Mistura de medo e desejo
Tô aplaudindo a sua coragem de me ligar
Eu pensei que só tava alimentando
Uma loucura da minha cabeça
Mas quando ouvi sua voz respirei aliviado
Tanto amor guardado tanto tempo
A gente se prendendo à toa
Por conta de outra pessoa
Só da pra saber se acontecer
É, e na hora que eu te beijei
Foi melhor do que eu imaginei
Se eu soubesse tinha feito antes
No fundo sempre fomos bons amantes
É o fim daquele medo bobo

Quando abro os olhos, está todo mundo nos olhando, e as três cadeiras estão viradas para frente. Paula dá uns pulinhos de alegria e faz uma cara de sapeca. Parece uma criança de dez anos ganhando um concurso na escola. Eu rio da felicidade dela, e trato de pôr um fim em todos os medos bobos que estavam rondando minha cabeça ontem.

Porque agora eu tenho certeza de que, enquanto a Paula estiver aqui comigo, vai ficar tudo bem.
E eu não me importo que seja cedo demais para afirmar isso.

Ayla Onde histórias criam vida. Descubra agora