Capítulo 5 - Porto seguro

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Sinto meu coração acelerado enquanto corro pelo cômodo escuro. Ouço seus passos pesados atrás de mim, e sei que não tenho para onde ir. Uma hora ele vai me alcançar.
O sótão é imenso e está completamente desorganizado. Entulhos cobrem as paredes e se esparramam pelo chão, mas consigo vislumbrar um raio de claridade na parede oposta.

É uma janela, quase totalmente oculta por enormes caixas de papelão que se estendem de uma ponta a outra na parede. Tudo o que preciso fazer é dar um jeito de desobstruir a passagem e chegar até a janela.
Se eu me jogar, talvez quebre um ou dois ossos, mas não vou morrer.

Eu caminho até a janela.

Os passos ficam cada vez mais altos.

Você sabe que não vai a lugar nenhum ele diz.

Eu congelo. Ele está atrás de mim. Consigo sentir sua respiração na minha nuca, e sinto vontade de vomitar.

Ele agarra meu pulso e eu começo a me debater, mas suas mãos grossas em volta de mim me impedem.
Ele esfrega seu corpo em mim, e sinto um nó na minha garganta.

Por favor eu suplico. Ele me ignora e lentamente começa a abaixar minha saia.

Shhh ele diz. Vai ficar tudo bem, amor.

Eu acordo com um grito preso na garganta. Minha respiração está acelerada, e por um momento não consigo assimilar onde estou.
Levo alguns segundos para perceber que nada daquilo era real. Não estou em nenhum sótão, e ele não está perto de mim.
Pisco meus olhos para me acostumar com a escuridão e me sento na cama. Está todo mundo dormindo.

Não foi real, eu digo a mim mesma. Só mais um pesadelo.

— Hari? — eu ouço alguém sussurrar. Viro a cabeça para o lado, em busca do som, e vejo Paula deitada ao meu lado, com a cabeça apoiada na mão direita. — Tá tudo bem?

— Vai dormir — eu sussurro de volta.

Não quero que ninguém acorde por minha causa.

— O que houve? — ela insiste.

Eu fecho os olhos, e as imagens passam novamente na minha cabeça. Viro de bruço na cama para abafar um soluço, e sinto uma mão nas minhas costas.

— Ei — Paula diz. — Shhh. Tá tudo bem. Eu estou aqui.

Ela faz um carinho na minha cabeça.

— Foi só... só um pesadelo — eu digo, sentindo o choro preso na garganta. — Não precisa se preocupar.

Eu me viro de lado e fico de frente para ela na cama. Seus olhos azuis estão profundos e me encaram como se tentassem ler minha mente.

— Quer dar uma volta lá fora? — ela pergunta, sussurrando. Eu assinto.

Nós nos levantamos e saímos do quarto na ponta dos pés. A casa está em silêncio, exceto pelos roncos de alguns.

As sombras que se projetam nas paredes da sala parecem garras de monstros, o que me faz estremecer. Paula parece notar meu desconforto e passa um braço em volta de mim. Nós caminhamos até o jardim, e ela me convida a deitar na grama.

O céu está estrelado, e o cheiro da noite me faz bem. Eu relaxo no ombro de Paula.

— Desculpa por te acordar assim — eu falo. — Amanhã tem prova do líder. Você devia estar dormindo.

Já faz mais de duas semanas que estamos na casa, duas pessoas já foram eliminadas e eu e Paula voltamos de um paredão juntas. Acho que isso nos uniu mais ainda.
Não vou negar que os outros nos excluem um pouco. A gente passa a maior parte do tempo juntas, o que incomoda um pouco as pessoas.

— Acha que eu ia conseguir dormir sabendo que você está aí passando mal? — ela pergunta.

— Não estou passando mal... só tive um sonho ruim.

Eu fecho os olhos. O pesadelo me assombra há muito tempo. Ele me assombra há muito tempo. E eu nunca contei a ninguém.

— Vou ficar com você o tempo que precisar — ela diz, e eu amo o jeito como ela simplesmente não insiste no assunto. Ela apenas me compreende, e isso é tudo o que eu preciso.

Nós ficamos em silêncio por um longo tempo. Eu fecho os olhos, e tento esquecer as cenas do pesadelo, mas eu já não consigo distinguir da minha memória o que foi sonho e o que foi real.
O som da respiração de Paula me acalma um pouco, mas ainda sinto calafrios. Ela faz um carinho suave no meu nariz e eu suspiro.

— Se eu te contar uma coisa, você me promete não me achar maluca? — ela pergunta, quebrando o silêncio. Eu estreito os olhos. — É que... antes de entrar, eu pedi muito para ter alguém aqui em quem eu pudesse confiar. Uma amiga de verdade. E eu acho que essa pessoa é você. — Seus olhos estão brilhando, e ela dá uma risadinha baixa. — Eu não acho, eu tenho certeza.

Eu pisco de incredulidade. Consigo ouvir as batidas de seu coração acelerarem em seu peito.

— Eu também — eu digo. — Eu sempre rezava pra encontrar alguém aqui que me entendesse. Só precisava de uma pessoa, sabe?

— Então era pra ser a gente, não era? A gente veio aqui uma pela outra.

Eu assinto, e compreendo a sensação de familiaridade que senti no primeiro dia em que a vi. Era isso. Nós tínhamos sido preparadas uma para a outra.

— Porra, Hari, você é minha melhor amiga, e eu só te conheço há duas semanas — ela diz. Seus olhos estão cheios de lágrimas, e eu sei que os meus também estão.

— Claro né, a única amiga que você tinha era uma porca — eu digo. Ela mostra a língua para mim.

— Como você é ridícula.

— Fala nada que eu sei que você me ama — eu digo, e sinto minhas bochechas corarem na hora. Me xingo mentalmente por isso, mas Paula só ri.

— Ridícula e convencida — ela diz.

Eu olho para o céu. As constelações brilham ao longe, e eu me lembro de uma história que minha mãe contava quando eu era pequena, sobre cada estrela ser um anjo para cada pessoa da Terra.
Mas alguns anjos não são estrelas. Existem anjos na Terra também.

A gente fica assim por muito tempo, abraçadas na grama piniquenta do jardim do BBB, fitando o céu iluminado pelas luzes noturnas. Cada uma presa no seu mundinho, com seus próprios pensamentos. Mas isso não importa, porque estamos juntas, e vamos ficar juntas até o final.

Eu consigo dormir no ombro de Paula, e dessa vez sem pesadelos. Sem ele invadindo meu sono. Esse problema é um problema que eu só vou resolver quando for embora daqui.

Ayla Onde histórias criam vida. Descubra agora