Assassina

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O carro parou na frente da casinha verde de madeira quando a lua já estava alta no céu. Céllie havia dormido por quase todo o caminho, de modo que àquela altura estava elétrica e entediada.

Charles retirou as bolsas de dentro da mala do carro, e as carregou com habilidade para dentro da casa. Apesar da idade um tanto avançada e da aparente magreza, o velho homem possuia uma força escondida em sob a fachada taciturna e frágil.

Os dedos ágeis de Céllie viajaram pelo teclado do celular, notificando que já havia chegado ao seu destino sã e salva. Era importante que o seu contratantante soubesse exatamente o que estava acontecendo. Apesar de amar a escuridão, todos os negócios de Céllie eram claros como a luz do dia.

Jogando o celular de qualquer jeito dentro da bolsa, Céllie se encaminhou para a parte de trás do carro negro. Ela havia insistido muito para que os pais a deixassem comprar um carro funerário, mas eles decidiram que seria chamativo demais.

Se curvando sobre o porta-malas, Céllie tateou em busca da mala chata e quadrada onde guardava o seu bem mais precioso e o levou para dentro, parando apenas para olhar a lua que saía por detrás da casa, como um sorriso cínico e brilhante. Céllie adorava a lua.

Passando pela soleira da porta, a garota sentiu o ar mofado pinicar em seu nariz, causando uma coceira desconfortável na garganta. Ela podia apostar que a casa não era habitava há decadas.

- Esse foi o melhor lugar que você conseguiu achar, Charlie? - perguntou, mexendo o nariz como um coelho, de uma forma que os poucos fãs que ela tinha achavam adorável.

- Infelizmente, sim, minha querida - respondeu Charlie, já sem bagagens, retirando as luvas brancas agora sujas pela poeira. - Precisaremos fazer uma limpeza pesada no ambiente pela manhã.

Céllie deu um sorriso forçado e superficial.

- Claro. Essa é a minha forma favorita de começar o sábado.

- Eu estudei toda a planta da casa, senhorita - disse Charlie, ignorando o resmungo de protesto de Céllie sobre a limpeza. Ele sabia que ela poderia até se fazer de ofendida, mas o ajudaria a arrumar a casa inteira até que ela ficasse habitável novamente. - Os quartos ficam no segundo andar, assim como o banheiro, e a biblioteca. - Charlie apontou para as escadas. - Além da escada, você pode usar o elevador secreto da casa, usado para transportar pesos. Já verifiquei e ele está funcionando.

Não era uma novidade que casas como aquela possuíssem elevadores embutidos, mas o que interessava mesmo a Céllie era o porão.

Lendo a expressão de Céllie, Charlie se apressou em confirmar as expectativas da menina, antes que ela fizesse qualquer pergunta.

- Sim, há um porão. Grande, perfeito para os seus treinos.

Os olhos de Céllie brilharam.

Três fatos sobre os porões: Primeiro, não havia nenhum lugar melhor do que um lugar subterrâneo para ficar sozinho com os próprios pensamentos. O eventual barulho das cidade durante o dia era como um carrapato dentro dos ouvidos. Grudava de uma forma difícil de ser removida. Segundo, havia a quantidade de coisas interessantes para descobrir, vindas de tantas gerações anteriores, que alguns achados eram até engraçados. Por último, havia o espaço, geralmente grande, livre de qualquer olhar indesejado. Perfeitos para os treinos que Céllie precisava - e adorava - fazer.

Céllie correu na direção do amigo, e deu um beijo na testa careca dele. O fato de ter baixa estatura fazia com que a garota, no auge de seus dezesseis anos, fosse muito mais alta do que ele.

- Obrigada, Charlie. Você pensa em tudo.

- Apenas faço o meu trabalho, garotinha - Charlie falou, tentando esconder o leve embargo na voz. Não, com certeza não podia parecer um velho emotivo a essa altura do campeonato.

- Sei disso. - Céllie deu um sorriso condescendente. - Agora vou subir. Vamos ver quantas amiguinhas aranhas estão andando na minha cama nesse momento.

Charlie meneou a cabeça, assumindo uma postura semelhante a de um mordomo do século dezenove.

- Até amanhã, Charlie.

Antes que o velho amigo pudesse abrir a boca para lhe dizer que não dormisse tão tarde, Céllie subiu as escadas, levando a mala grudada ao peito até o primeiro quarto que encontrou.

Uma cama enorme de carvalho com dosséis altos estava posicionada do lado da janela de vidro gradeada, por onde a luz fraca da lua entrava. Uma fina camada de
pó escuro cobria os lençóis, e confirmando o que Céllie pensara, várias aranhas faziam morada nos cantos das paredes.

- Olá - ela falou, olhando para as teias que se acumulavam nas quinas -, parece que vamos ser amigas por um tempo.

Deixando de lado o fato de sua garganta coçar, Céllie sentou no chão frio de madeira e dobrou as pernas, colocando a mala cinzenta na sua frente.

Suspirou.

Não havia como controlar a sensação fervilhante que dominava as suas veias a cada vez que se via cara a cara com o instrumento dentro da mala.

Destravou os fechos laterais, e abriu. Deitada sobre o veludo vermelho e macio da mala estava uma arma prateada que brilhava como se possuísse luz própria. Inscrições minuciosas talhadas no cano curto contavam o número de vidas que aquele revólver já havia tirado.

Mesmo que negasse, Céllie conhecia a verdade essencial dentro de si mesma, assim como sabia a exata cor dos próprios olhos - castanho-esverdeado, com manchas amarelas e laranja próximas da pupila - e a localização de sua construção arquitetônica favorita, a Catedral dos Ossos -, em Évora, Portugal.

Céllie era era uma assassina. E viera para aquela cidadezinha sem graça fazer o que sabia de melhor. Embora mandasse muito bem com um microfone e um palco, sua especialidade não era cantar.

Eternal SleepOnde histórias criam vida. Descubra agora