Chamado para os lobos

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Noventa e nove por cento das probablilidades apontavam para a possibilidade de a Garota da Capa ser uma vilã, mas havia um fato curioso sobre ela que quase ninguém sabia: ela odiava sangue. A simples visão do líquido vermelho, carregado de células vivas fazia seu estômago rodopiar como um suco dentro de um liquidificador ligado na potência máxima. Ela odiava.

Algumas manipulações aqui, outras ali, uma informação errada no meio de tantas outras verdadeiras, responsável por tornar o caminho torto mais atraente… disso ela podia dar conta. Mas seus negócios não envolviam o derramento de sangue. Lembrava-lhe demais de quando o seu próprio foi derramado, tanto tempo antes… não era uma lembrança boa de se ter.


A garota da capa amava cantarolar em seus passeios noturnos. O ato inocente evocava a essência mágica do ar e a levava para dentro da menina, fazendo-a sentir como se aspirasse o perfume agradável e reconfortante de uma avó favorita que há muito tempo não se vê. Não havia nada mais delicioso do que aquilo.

Claro, havia também outra razão para a garota sentir o aroma delicioso de magia. Em algum lugar, ela sabia que seu peão já estava se movimentando pelo tabuleiro e abrindo espaço para o cheque-mate maravilhoso que planejara a muito tempo.

Seu brinquedo se chamava Suzan. A menina não tinha nada contra a professora. Para ela, a mestra tinha o coração de uma gata branca, que se deita no colo de um dono para buscar afago. Mansa, ingênua e se assustava com facilidade, lançando mão do seu poder como se fossem garras frágeis.

Munida com sua capa costumeira e a máscara que já se tornara parte de sua vestimenta, a garota subia a trilha que a levaria para perto da sua peça, para ver o desenvolvimento do jogo de camarote. Tudo saíria exatamente como planejara, e essa certeza fez com que seus passos se tornassem mais lentos, mais preguiçosos. Nada ia contra a certeza de que tinha todo o tempo do mundo ao seu dispor.

A luz fraca de um lampião iluminava o caminho, lançando claridade sobre flores selvagens de cores vibrantes que cresciam na rocha contrariando todas as dificuldades. A garota podia jurar que elas não tinham cheiro de nada, e que suas pétalas não eram tão macias, mas não dá para ser resiliente e bonita ao mesmo tempo. A vida só permite escolher uma única opção por vez.

Totalmente relaxada, subiu a estradinha ascendente oriunda no sopé da montanha, despreocupada com  acontecimentos. Talvez por isso a sensação impactante de que havia algo estranho a atingiu com tanta força, como um instinto que gritava para que ela fugisse, berrando em seus ouvidos o alerta insistente de perigo.

Ao invés de recuarem, seus pés moveram-se com determinação, indiferentes ao martelar constante dos batimentos cardíacos que ecoavam em seus ouvidos.

E então o pé direito dela encontrou o líquido negro e gelatinoso que preenchia uma pequena cratera no chão da trilha.

Imediatamente, o cheiro ferruginoso e frio de medo e morte espiralou pelo ar, sufocando sua respiração e lhe causando ânsias. Quase dava para sentir na língua o gosto ácido da bile, implorando para sair.

Alguma coisa escapara de seu plano e dera o mais errado que poderia dar.

Em nome de todos os deuses esquecidos, pensou, com um toque de horror correndo por suas veias, o que acontecera com o seu pobre peão?

A garota largou o lampião no chão sem jeito, e levantou a capa acima dos tornozelos, correndo para a boca da caverna onde deveria acontecer uma simples invocação do Conselho.

O lugar estava iluminado por uma claridade trêmula e sombria, que lançava dedos arroxeados para todos os lados, prendendo a escuridão como galhos pegajosos.

Suzan estava exatamente aonde deveria estar, mas o grande sorriso que costumava dar não estava em seus lábios, seus olhos não estavam abertos e vivos. E definitivamente, a longa linha vermelha e irregular em seu pescoço não era um colar.

Sua peça estava deitada no chão de uma maneira estranha e inumana, e havia uma pessoa de cócoras perto dela. A garota soube naquele momento que mais alguém  pegara o seu tabuleiro e movera o seu peão.

Antes que a outra pessoa levantasse a cabeça para encarar a menina, um rosnar grave e feroz soou tão próximo dela que ela pôde sentir o bafo quente em suas costas. Ela engoliu em seco por várias vezes, tentando não permitir que a sua saliva grossa bloqueasse a sua respiração

Um uivo agudo penetrou a noite como uma espada, alto e cortante, acordando o medo dentro dos ossos dos que puderam ouví-lo.

O chamado para os lobos foi dado naquele momento, convidando-os para o jogo, incitando-os para uma dança perigosa demais para uma simples garota.

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