Círculo de ossos

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Trish Montgomery andou até o seu destino final com a calma de um gato prestes a pegar um pássaro. Quando queriam abocanhar a caça, rastejavam silenciosamente, com os olhos fixos no objetivo, sem fazer um barulho sequer. Algumas presas eram perdidas por um mero deslize, e no dia em que o caçador era inábil, dormia de barriga vazia, lamentando a oportunidade perdida.

Foi assim que ela descobriu alguns dos seus melhores trunfos. Olhos felinos, ouvidos atentos, e paciência, muita paciência. O sabor da sua última descoberta ainda estava fresco em sua língua, metálico e salgado, como sangue ou veneno.

A noite já havia caído há horas, e o frio tentava se infiltrar, sem muito sucesso, pelas roupas de Trish. A garota viera preparada para aquilo. Os sapatos fechados e de solado grosso, para a caminhada pelo solo íngreme, blusa de gola alta, jaqueta de lã e luvas, tudo previamente enfeitiçado para se disfarçar nas sombras sem o perigo de ser vista.

Mesmo sendo uma bruxa, Trish não desperdiçava sua energia com coisas desnecessárias. Um exemplo disso, havia acontecido nos quatro dias anteriores, quando a garota marcarada aparecera. Se alguém se dava ao trabalho de fazer tanto barulho para anunciar a própria chegada, não faria isso para um espaço vazio. Era óbvio que ela sabia que teria uma platéia.

Aliás, era exatamente pela garota estranha que Trish estava ali - não que gostasse dela, ou estivesse disposta a lhe fazer qualquer favor -; uma das poucas coisas úteis que ela dissera em meio ao falatório prepotente que, supostamente, levaria todas para fora do caos, fora a importância do Conselho Triplo ser informado sobre tudo o que estava acontecendo. Uma vez que isso acontecesse, todas as bruxas seriam obrigadas a irem ao mesmo lugar, ao mesmo tempo. E por quê?

Suzan aceitara cegamente o conselho da garota. Ela estava com medo, era compreensível, mas algo não batia em toda a equação, e Trish adorava matemática demais para deixar passar qualquer coisa minimamente ilógica.

O Conselho Triplo era formado por três criaturas extremamente poderosas. As bruxas as respeitavam, e os inimigos delas, os Solarus, temiam. Ninguém nunca vira seus rostos sob os chapéus pontudos e de abas largas - talvez daí estivesse vindo os acessórios mostrados nas lendas infantis - mas cada bruxa a receber um chamado, provara de sua supremacia.

Trish passou a mão nas três linhas marcadas em seu pulso, sob as diversas camadas de roupa. O calor não havia abandonado a pele depois da queimadura que nenhum fogo no céu ou na terra poderia ter feito.

Escondida atrás da montanha íngreme, o primeiro rastro da lua nova, no limite entre a lua negra e a fase seguinte, aparecia. Era a época perfeita para evocar o Conselho e rogar-lhe uma audiência.

Suzan estaria ali naquela noite. Sozinha. Isso era tão certo quanto o desespero irracional que Trish sabia que sua mestra estava sentindo.

Estreitando os olhos, ela se concentrou em pôr um pé atrás do outro, seguindo pela trilha irregular na base da montanha escarpada, procurando não derrubar uma pedrinha sequer.

Uma caverna se abria no meio da rocha, acesa com a luz bruxuleante de um archote. Àquela altura, Suzan já deveria ter chegado, e iniciado o chamado.

Trish se abaixou, e apoiou a mão na pedra, olhando para dentro do recinto iluminado. Suzan estava ajoelhada dentro de um círculo de ossos, com os braços erguidos, enquanto chamava, clamava, incitava, com palavras tão antigas que se tornavam quase indecifráveis. A todo momento, ela olhava para o lado, como se estivesse com medo de alguma coisa oculta e ameaçadora.

Ocorreu a Trish que algo deveria estar errado naquela invocação, porque as palavras se transformavam lentamente em uma coisa brutal e crua, como uma onda espessa de sombras, se erguendo e espiralando, rasgando qualquer barreira que contivesse aquele poder sombrio. Mais poderoso e primordial do que as bruxas.

O fogo que iluminava a caverna apagou abruptamente, como se um sopro de ar gelado tivesse-no suprimido. O feitiço se tornou um cântico acelerado e crescente, e o ar pesou.

Foi então que uma besta se materializou do nada, pulando para dentro do círculo de ossos, e rasgando a garganta de Suzan tão rápido que os olhos de Trish, mal ajustados á escuridão, quase não puderam ver. Não houve tempo para gritar, apenas o barulho molhado nauseante. O sangue, negro pela iluminação, escorreu pelo chão, chegando até onde Trish estava. Ela engoliu o som de horror que estava na sua garganta.

A criatura era maior do que um cachorro de grande porte, com espinhos negros por todo o corpo, e dentes e garras gigantescos. Os olhos brilhavam com uma fúria assassina e sangrenta, insentas de qualquer traço de racionalidade.

O coração de Trish paralisou no peito. Aquele não era um Conselheiro. Era a morte, o mal, e a destruição presas no corpo de uma única criatura.

Trish desejou mais do que nunca ser um pássaro naquele momento. Não um gato, nem um predador, mas sim um pequeno ser com asas fortes o suficiente para voar para longe dali.
Na tentativa de recuar, o pé da garota bateu acidentalmente numa pedra, e o barulho ecoou, fazendo a pior coisa que ela poderia imaginar se tornar realidade. A criatura demoníaca tomou consciência de sua presença.

Quando o cão infernal deu um salto para a entrada da caverna, Trish fez a única coisa que podia: correu, o mais rápido que conseguiu com seus pulmões inflamados pelo ar denso e tóxico. Tropeçando nas pedras, e rasgando as roupas nas agulhas de rocha.

Nenhum feitiço que conhecia a ajudou naquele momento. Ela estava exposta e vulnerável, como uma pessoa amarrada na linha de um trem. O sangue gelado retumbava dentro de sua cabeça como um tambor...

A criatura se lançou no ar. Trish a viu chegar, mais e mais perto, quase sentindo seu bafo quente e ácido, e então...

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