O despertar

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Diziam que toda sua vida passaria diante dos seus olhos no momento de sua morte, porém, com o Carlos ocorreu algo reverso, viu toda sua vida passar pelos seus olhos como em um filme no momento do seu despertar para a vida. Todas as lembranças pareciam voltar com tudo para sua mente e pode ver momentos da sua infância que nem conseguia lembrar-se mais, como por exemplo, das quedas de bicicleta, das quedas das árvores, sendo que uma dessas quedas resultou em uma fratura no braço esquerdo, das brincadeiras na rua de casa, ou do primeiro beijo com a Catarina dos Anjos, atrás de sua casa. Foi possível ver também a primeira vez em que viu o Edmilson. Viu os vários passeios feitos com os pais e as várias discussões que tiveram. E finalmente, reviu o momento exacto em que se apaixonou pela Nádir e pode sentir tudo o que sentiu naquele momento em que seus olhos se encontraram e souberam que o que sentiam era algo especial e único, surgindo assim, em seguida, uma sucessão de imagens que mostravam os vários momentos que passaram juntos e das várias conversas que tiveram e do pacto que fizeram de que nunca se separariam.
Então, tudo simplesmente ficou escuro e surgiu a imagem do acidente, que diferente das outras, parecia passar em câmera lenta. No exacto momento em que o carro capotou, sentiu que seu corpo parou de ser puxado e para sua tristeza, não podia sentir mais a mão da Nádir segurando a sua.
Carlos sentiu seu corpo repousar sobre uma cama macia. A dor que percorria todo seu corpo era terrível, no qual a simples intenção de mover um dedo provocava uma grande dor.
Assim que saiu da sua mente e voltou ao corpo pode escutar várias vozes ao seu redor. Reconheceu imediatamente várias delas. De imediato não abriu os olhos, ficou imóvel, escutava tudo que era dito ao seu redor.
− Meu filho, eu não posso acreditar... Meu filho... Meu filho não − disse a Sra. Daniel enquanto chorava.
− Calma, meu bem. Fizemos tudo que podíamos. Não podemos fazer mais nada − disse o Sr. Daniel com uma voz que tentava ser firme, mas que a qualquer momento desabaria.
− Não... Não... Ele não pode ter partido. Eu não posso acreditar. O meu filho não pode ter morrido − disse a Sra. Daniel se aproximando do Carlos, que permanecia imóvel.
Carlos pode sentir a mãe se aproximar dele e se debruçar sobre seu corpo. Ele pode sentir as lágrimas quentes da mãe sobre seu rosto e sua vontade foi de se levantar rapidamente e abraçar a mãe. Mas se limitou, quando ouviu sua mãe sussurrar algo bem baixo.
− Meu filho, por favor, eu sei que não está morto. Por favor, não me abandone, eu sei que você sempre foi forte e que nunca desistiu de nada. Então, por favor, Carlos, não desista agora. Acorde. Acorde!!!
Vendo que a mulher estava descontrolada, o Sr. Daniel se aproximou da mulher e calmamente tentou retirá-la de cima do Carlos.
− Querida... Querida, por favor, eu sei que é difícil para você. Isso também é difícil para mim. Mas... Mas temos que ser forte... Carlos... Nosso Carlos se foi. Eu sinto muito, querida. A Sra. Daniel, ouvindo as palavras do marido, se recusou a sair de perto do filho. Algo em seu interior dizia que o filho ainda estava vivo, mesmo que isso parecesse impossível. Então permaneceu deitada sobre o filho, pedindo a Deus que fizesse um milagre.
Tentou levantar os braços e envolver sua mãe em um grande abraço. Porém, apenas se limitou a dizer:
− Mãe, eu também te amo, mas poderia sair de cima de mim... Meu corpo está todo dorido. Ela se levantou rapidamente. Sua expressão era de puro espanto. O Sr. Daniel que começava a apresentar sinais de que iria se juntar a esposa no choro ficou imóvel, olhou para o filho, que lentamente abria os olhos.
A luz invadiu os olhos do Carlos, causando um grande desconforto. A Sra. Daniel percebendo isso foi até o abajur que ficava próximo a cama de Will e reduziu um pouco a luz, permitiu que o Carlos pudesse ter uma visão melhor do ambiente em que estava. Como suposto pelo Subconsciente, se encontrava mesmo em um quarto de hospital, sendo este pequeno, porém bastante arrumado. O quarto era familiar para ele, pois se tratava de um dos quartos do hospital da cidade. Ao lado da maca, havia uma série de aparelhos que encontravam desligados, o que reforçou o facto de que realmente havia morrido.
− Carlos!!! Eu sabia!!! Meu filho está vivo!!! − gritou a Sra. Daniel, chamando a atenção de todos que estavam próximos.
− Mãe, calma... Por... Favor − disse o Carlos com dificuldade, pois sua garganta parecia bastante seca dificultando a fala. − eu gostaria de um pouco de água.
− Eu vou chamar um médico para te avaliar e depois veremos se você pode beber água − disse o Sr. Daniel.
− Quanto tempo eu estou aqui? − perguntou o Carlos sentindo uma grande pressão sobre a garganta a cada palavra dita.
− Há quase um mês, querido − respondeu a mãe tentando parecer o mais calma possível.
Carlos ficou impressionado com a resposta dada pela mãe, pois enquanto esteve em sua cabeça, o tempo decorrido havia sido o de apenas uma semana, mas acabara de saber que na vida real havia se passado um mês. Mas isso não era uma grande novidade, uma vez que já viu um documentário em que foi dito que o tempo da mente era diferente do nosso tempo, podendo este ser mais lento ou mais rápido, dependendo da pessoa e da situação. Porém todos os seus pensamentos sobre o assunto do tempo em que esteve em coma foram varridos da sua mente quando lembrou-se da Nádir e com isso não pode deixar de perguntar a mãe:
− Mãe... Como está a Nádir? Ela está bem? Ela também está aqui? − Carlos não podia esperar mais nem um momento para saber como estava a Nádir.
− Não se preocupe. Depois falamos sobre isso. Agora trate de descansar. Seu pai foi buscar o médico e veremos como você está.
Ele percebeu que a mãe havia mudado de assunto, porém não sabia o porquê. O que teria acontecido com a Nádir após o acidente? Será que o Marcos teria sido preso?
Em pouco tempo o Carlos estava rodeado de médicos, que avaliavam cada parte do seu corpo e faziam perguntas, para as quais não tinha respostas. Os pais, ainda em estado de choque, apenas observavam, temiam que a qualquer momento o filho tivesse um colapso e viesse a morrer.
Edmilson, que esteve este tempo todo na sala de espera, entrou as presas no quarto. Seus olhos estavam inchados. Ao ver o Carlos acordado não conteve o sorriso, parecia que havia acabado de ganhar na loteria.
− Você nos deu um susto e tanto − disse Edmilson se aproximou da maca.
− Não leve a mal. Eu juro que foi sem querer – disse o Carlos com uma voz irónica que provocou um grande sorriso no Edmilson.
− Esta tudo bem com você? Esta com dor? – perguntou o Edmilson após ver a expressão de dor no rosto do Carlos quando tentava falar.
− Esta tudo bem, só meu corpo que está dorido, mas o médico me disse que é normal devido ficar quase um mês sem me movimentar.
− Você nos deu o maior susto sabia? Você não sabe como eu fiquei quando eu te vi naquele carro todo ensanguentado. Eu... Pensei até que você estivesse... Morto.
− Você esteve no local do meu acidente? – perguntou  Carlos, surpreso com a revelação feita pelo amigo.
− Sim. Eu estava no baile e fiquei esperando por você, só que depois de um tempo vi que você não apareceria... Eu chamei a Cátia e nós dois fomos a sua casa, mas seu carro não estava lá... Então, eu pensei que você só poderia estar na casa da Nádir, o que logo percebi que não era verdade. Nesse momento eu comecei a ficar realmente preocupado... Tentei ligar para o seu telemóvel varias vezes, mas, você não atendia. Eu pensei em ligar até para sua mãe, porém não o fiz para não preocupa-la. Sem saber o que fazer, a Cátia pediu para voltar para o baile porque talvez você pudesse ter chegado... Mas, no caminho nós vimos o seu carro capotado no meio da rua, então, eu me aproximei e te vi inconsciente... Não pensei duas vezes e retirei você de dentro do carro e depois procurei pela Nádir, mas infelizmente não consegui encontrá-la. Liguei imediatamente para a ambulância e para a polícia... E... Bem, o resto você pode imaginar. Você não sabe como foi difícil ter que ligar para seus pais para avisa-los.
− Você não encontrou a Nádir? Como assim? –perguntou Carlos.
− Calma... Depois você pensa nisto... Agora trate de descansar – disse o Edmilson, nitidamente querendo fugir da conversa.
Carlos estava completamente atordoado com a história contada por Edmilson e ficou triste por saber que o amigo havia passado por uma situação como aquela. Ficou se imaginando no lugar do amigo e pode sentir como seria angustiante ver um amigo naquela situação.
Meu filho, eu sei que você está cansado, mas lá fora tem um agente da polícia que gostaria de fazer algumas perguntas.
− Que perguntas?
− Hum... Perguntas sobre o dia do... Acidente. − tanto a Sra. Daniel quanto o Sr. Daniel ficaram inquietos com a pronúncia da palavra "Acidente".
Carlos não disse nada e apenas concordou com a cabeça. Logo depois estava de frente para  do agente da policia, que parecia bastante curioso.
− Bom dia, Carlos. Eu sou o Agente Marcelo e se me permitir gostaria de fazer algumas perguntas. Você concorda? – após terminar de falar, o agente retirou um pequeno bloco de notas do bolso, juntamente com uma caneta.
− Sim, claro. Se eu puder ajudar.
− O que você lembra da noite do acidente? Tente se lembrar dos mínimos detalhes.
− Bem... Eu... − aos poucos as lembranças se organizavam na cabeça do Carlos. Acordar depois de um coma era como estar muito embriagado e ter todas as lembranças confusas. − Eu fui buscar a Nádir em casa para irmos ao meu baile de formatura... Mas... Quando cheguei na casa, encontrei a porta da frente aberta e entrei. Foi quando ouvi uma discussão que vinha do andar de cima. Eu tentei chamar a Nádir, mas não fiz isso com medo. Depois de alguns minutos a Nádir desceu as escadas e disse para irmos logo para o baile... Eu... Perguntei a ela se estava tudo bem... Mas... Mas ela me disse que estava bem, então nós entramos no carro e partimos...
− E quem estava a discutir no andar de cima da casa?
− Eu acho que eram a mãe e o padrasto da Nádir.
− Você acha ou tem certeza? − perguntou o agente.
− Eu não posso afirmar nada... Eu apenas escutei a discussão... Mas... As vozes pareciam ser a deles.
− E você conseguiu ouvir o que falavam?
− Não. Eu fiquei somente na entrada e não consegui ouvir o que diziam, mas pude perceber que ambos estavam bem nervosos.
− Tudo bem... Continue... − disse o agente voltando à atenção ao bloco de notas.
− No caminho para o baile, a Nádir disse que estávamos sendo seguidos e quando olhei para o retrovisor do meu carro eu pude ver um carro que vinha em alta velocidade. Nádir parecia muito assustada e um pouco depois o carro embateu contra o meu carro e perdi o controle... E... E depois capotamos.
− Hum... É você sabe quem conduzia? – todos que estavam no quarto ficaram tensos, a esperar a resposta.
− Não. Sinto muito... Eu... Não vi... O carro estava com o farol no maximo.
− Tudo bem. Só tenho mais uma pergunta. Você sabe onde a Nádir pode estar?
− Como assim? A Nádir desapareceu? − o primeiro impulso do Carlos foi o de tentar se levantar da cama, mesmo com a imensa dor que sentia no corpo.
− A Sra. Daniel segurou o Carlos, que estava descontrolado.
Edmilson percebeu o grande esforço feito pela mãe do Carlos, correu para ajuda-la.
− Não me segurem... Eu preciso achar a Nádir... Ela corre perigo − gritou.
− Calma, filho. Eles vão encontra-la.
− Me desculpe, senhora, eu pensei que ele sabia do desaparecimento da jovem − disse o agente, constrangido.
− Tudo bem. Ele saberia mais cedo ou mais tarde – disse a mãe.
− Foi ele... Foi ele que a levou!! − gritou o Carlos.
− "Ele" quem? − perguntou o agente, preparando a caneta para anotar o que seria dito pelo Carlos.
− Foi o Marcos... Marcos Ronin... Ele sequestrou a Nádir.
− E como você sabe disso?
− Eu apenas sei. Você tem que acreditar em mim. Marcos sequestrou a Nádir... Ele é um doido e um psicopata.
− Tudo bem, fique calmo, esta bem? − disse o agente − Marcos não sequestrou a Nádir.
− Você não conhece ele... Me escute, por favor, foi o Marcos.
− Carlos, se acalme, é impossível ser o Marcos − disse o agente guardando o bloco novamente no bolso.
− E por que não? Você poderia pelo menos investigar?
− Marcos está em casa a recuperar de um ferimento grave. Ele não teria condições de sequestrar ninguém, ainda mais que no dia em que a Nádir desapareceu foi o dia em que o Marcos levou uma facada.
− Uma facada? Mas de quem? − tudo estava confuso na mente de Carlos, uma vez que acreditava piamente que o Marcos seria o responsável pelo desaparecimento de Nádir.
− Nos não sabemos. Marcos se recusa a dizer o que houve e não podemos obriga-lo a dizer. Enquanto não se recuperar não podemos indicia-lo para um interrogatório e mesmo assim, duvido muito que diga alguma coisa. Eu mesmo fui várias vezes a sua casa para tentar convence-lo a fornecer qualquer informação sobre o paradeiro da Nádir, mas o homem é cabeça dura e nem me permitiu entrar.
− E como foi exatamente que a Nádir desapareceu? – Carlos estava louco por informações que pudessem ajudar a encontrar a Nádir.
− Não temos certeza, mas acreditamos que ela foi levada do local do acidente que vocês sofreram. A Sra. Mayer também desapareceu, o que a torna a principal suspeita.
− A Sra. Mayer não faria algo assim. Por que ela levaria a própria filha? Isso não faz sentido − Carlos novamente tentou se levantar, mas foi impedido mais uma vez pela mãe.
− Eu sei que não faz sentido, mas é a única explicação que temos. Mas podemos estar enganados, porém não podemos excluir está hipótese. Acreditamos que a Sra. Mayer tenha esfaqueado o marido e logo em seguida pegou o carro do marido e causado o acidente em que vocês estavam. Mas, infelizmente não podemos afirmar com certeza tudo isso, pelo menos não enquanto Marcos continuar a manter segredo. Agora tudo depende dele.
O agente Marcelo se despediu de todos e retirou-se. Todos que estavam no quarto do hospital permaneceram calados. Carlos não podia acreditar que tudo estava acontecer novamente e que mais uma vez havia perdido a Nádir. O destino parecia estar a brincar com os dois, se negando a permitir que ficassem juntos...
Os dias seguintes foram de muito trabalho e dedicação. Carlos estava cansado de estar ali, naquele hospital, mas por ordens médicas era realmente necessário o monitoramento constante, pois a qualquer momento poderia vir a entrar em coma novamente, caso tivesse um colapso. A fisioterapia não poderia ser mais cansativa e dolorosa, porém era muito agradável graças a doutora Tatiana, a fisioterapeuta responsável pelo tratamento, que não cansava de motivar o Carlos para sempre ir mais longe nos exercícios. Já na primeira semana de tratamento, ele pode notar uma grande melhoria na mobilidade dos braços e das pernas, sendo liberado o uso da cadeira de rodas. A dificuldade em manobrar a cadeira pelos corredores do hospital era grande, entretanto, aos poucos foi conseguindo. Em pouco tempo já não era necessária à presença da mãe todo tempo ao seu lado e com isso sentiu a sensação de independência, que gostava tanto. A fonoaudiologia por outro lado o deixava muito nervoso e com dor de cabeça. Eram exercícios repetitivos que causavam uma certa frustração e que demorava uma eternidade para terminar. Carlos pensou que não suportaria o tédio e a rotina de ficar confinado por um longo período de dias em um hospital, mas, felizmente, seu melhor amigo, sempre ficava ao seu lado, o que foi bom para poderem colocar as novidades em dia.
Três semanas se passaram desde que o Carlos acordou do coma e iniciou a sua reabilitação. O tempo corria tão lentamente dentro do quarto de hospital que parecia que estivesse naquele local a dois meses.
Quatro dias antes de completar um mês de internação, Carlos recebeu alta, visto que seu estado de saúde estava perfeito. A Sra. Daniel recebeu uma lista de recomendações médicas que deveriam ser seguidas a risca para que a recuperação de fosse completa e conhecendo bem a mãe, Carlos sabia que ela o obrigaria a seguir a risca cada um dos itens da lista.
A volta ao lar foi o mais calmo possível. Os pais do Carlos não falaram muito durante todo o caminho e que facilitou para o Carlos perceber como os pais deviam estar exaustos com aquela rotina que estavam a levar. A cabeça de Carlos estava tão cheia de coisas, que nunca parou para pensar como devia ter sido difícil para os pais o período em que esteve em coma, principalmente para o pai, que não pode trabalhar nesse tempo para ficar com a mãe e com o filho.
A casa estava exatamente igual, somente um pouco mais suja que o normal, porém todos os detalhes ainda estavam lá. Carlos, sem perder tempo subiu para o seu quarto e percorrendo-o com os olhos viu que estava exatamente igual ao que lembrava. Ao deitar na cama não pode deixar de lembrar da noite que ocorreu na sua mente, em que Marcos invadiu o seu quarto e matou sua mãe e a Nádir. A cena ainda estava tão viva em sua mente, que era difícil acreditar que ocorreu apenas em sua cabeça. Tudo que aconteceu enquanto esteve em coma poderia ser superado com o tempo se não fosse pelo facto de que mais uma vez a Nádir estivesse desaparecida e que Carlos não podia fazer nada.
Mais uma vez estava em um beco sem saída.

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