Capítulo I
Carmo não conseguia dormir.
No quarto, deitado à meia luz, encarava fixamente as pequenas rachaduras no teto, imaginando quando e como haviam se formado, na esperança que esse exercício de imaginação lhe abrisse as portas do sono.
Impaciente, percebeu o mostrador do relógio. Duas e dez. Já travava essa batalha havia três horas e meia. Olhou ao lado do relógio o indutor de sono, pensando em todos os bons motivos para não usá-lo.
Finalmente sentou-se na beirada da cama e, derrotado, apoiou os cotovelos nos joelhos. Suspirou longamente enquanto encarava o pequeno aparelho que lhe permitiria o sono, artificial é verdade, mas ainda assim, sono.
Não era uma das soluções mais simples. Carmo tinha razões de sobra para evitar usar o indutor. Um dos problemas era o dia seguinte onde acordar, ou no caso ser despertado artificialmente de uma indução, nunca era uma experiência natural ou agradável. Depois de desperto, durante umas boas duas horas tinha-se a sensação de ainda estar dormindo, como se tudo a sua volta fosse parte de um sonho. Era um efeito colateral conhecido como "estado de vigília com resíduo onírico" ou EVRO. Um nome bonito para dormir acordado e algo péssimo para alguém com sua profissão.
Durante alguns minutos encarou o pequeno aparelho como quem olha para um inimigo muito mais poderoso. Não era um modelo dos mais feios, como aqueles antigos trambolhos com capacetes e fios.
Tratava-se de meio globo prateado com um mostrador negro em seu centro. Do alto dessa base saltava uma caneta elegante que também exibia um mostrador. Num gesto rápido, Carmo apanhou a caneta e durante alguns segundos segurou-a indeciso. Finalmente, passou o polegar sobre o mostrador fazendo uma contagem aparecer com brilhantes números vermelhos de um a cinco que tingiram seu rosto de rubro. Mais um movimento idêntico e o contador, obediente, saltou de seis até dez. Repetiu esse ritual outras duas vezes até a marca de vinte segundos aparecer. Um toque no pequeno e quase imperceptível sensor na base da caneta fez com que uma leve luz azul clara brilhasse na ponta oposta. Olhou para o indutor e conferiu se o mostrador também mostrava vinte segundos. Torcia para que algo estivesse errado, para voltar a sua guerra pelo sono. Pelo menos não se sentiria derrotado pela tecnologia, e o mais importante, não seria um zumbi por duas horas na manhã seguinte. Mas a máquina não tinha essa sensibilidade e o contador da base era idêntico ao da caneta.
Lembrou-se dos casos, raros há alguns anos, de pessoas que configuravam seus indutores para dias de sono, depois um ou outro caso para meses e atualmente dos casos, cada vez mais numerosos, de configurações para dois, cinco ou dez anos. Uma espécie de suicídio sem sangue, química ou violência. As pessoas não se contentavam mais com implantes de chips antidepressivos. O sono artificial, configurado com sonhos cuidadosamente escolhidos, era a fuga perfeita do mundo. Aliás, as empresas que produziam essas máquinas infernais haviam descoberto um novo e lucrativo mercado na venda de sonhos por download. Haviam sonhos para todos os gostos, desde os heróicos até os eróticos, e a capacidade de criar playlists ou até mesmo encomendar um sonho personalizado aumentara criticamente os suicídios por IS. O problema, que as pessoas pareciam não se importar, é que não há como acordar alguém de sono induzido artificialmente. Centenas de desaparecimentos na realidade eram apenas casos de hiper indução. Quando esses coitados tinham sorte a policia os encontrava antes que morressem de inanição. Mas nem sempre a sorte favorecia os sonhadores.
Saindo de seu devaneio, Carmo olhou para a caneta em sua mão. Levou-a gentilmente até a cabeça e tocou a fronte com a ponta que brilhava azul e que imediatamente apagou-se. O contador na caneta agora regredia em direção ao zero. Se a caneta não fosse recolocada na base a indução seria abortada. Pensou durante dois ou três segundos e então retornou a caneta ao seu local original iniciando a contagem regressiva no mostrador maior.
Deitou-se com os dedos cruzados sobre o peito, como os vampiros dos filmes de séculos atrás.
E falando em filmes, lembrou-se que tinha dois em sua conta da videoteca que ainda não havia assistido. Os dois do século vinte. Nosferatu, desse se lembrava, e o outro, como se chamava mesmo?
0:15.
Era um filme alemão, do final da década de vinte. Século vinte também se não estivesse enganado.
0:10.
Uma ficção-cientifica, disso tinha certeza, e o diretor era um tal de Fritz alguma coisa.
0:05.
Qual era o nome filme? Podia programar o indutor para exibir o filme enquanto dormia, pensou, mas para isso precisava lembrar o nome!
0:00
Carmo finalmente estava dormindo
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O Deus da Máquina
Science FictionO policial Carmo Miranda tenta desvendar um assassinato que talvez não seja um assassinato. Romance de ficção científica com a pretensão talvez ingênua de entender o que é "ser humano".