Das memórias de minha infância que se mantêm frescas em minha mente, muitas estão relacionadas à rua mais conhecida como "Rua da Embasa", onde vivi durante toda minha infância.
A Rua da Embasa, assim como costumam ser as ruas iaçuenses, possui a forma de um corredor estreito e, devido sua curta extensão, alguns raros quebra-molas.
Em fato, ela se divide, basicamente, em três blocos, sendo estes demarcados pelas esquinas que ligam e dão acesso às ruas vicinais.
Entre as pessoas que viveram ou que lá vivem, as figuras femininas mais velhas ocupam sempre lugar de destaque em minhas lembranças.
Uma delas, de quem me recordo vivamente, é Narituvi ou simplesmente "Tuvi", mulher negra, alta, que morava numa casa simples, assim como costuma ainda ser a maior parte das casas nessa rua.
Quando nos víamos rapidamente, fazia-me, quase sempre, as mesmas perguntas, de voz rouca, em consequência do fumo que mascava constantemente, e falha, por conta dos poucos dentes que lhe restavam: onde é que estava meu pai, seu conterrâneo, que há muito ela não via, e sobre o paradeiro do meu avô, aquele velho chato, indagava, sorrindo.
Das poucas informações que tínhamos sobre Tuvi, fornecidas por ela mesma, é que nascera em Nazaré, cidade também baiana, e que se mudara para Iaçu com sua mãe e irmã quando ainda eram jovens.
Mas, agora, vivia sozinha naquela casa, pois sua mãe há muito havia falecido e sua irmã morava noutra casa, numa rua acima daquela.
Assim como a irmã, ela nunca casou. Um fato curioso sobre a irmã de Tuvi é que não tivera filhos, mas colecionava bonecas, as quais tratava como se fossem suas filhas.
Tuvi costumava, durante a noite, quase que religiosamente, sentar-se à porta de sua casa sobre um pedaço de espuma velha, enquanto assistia à televisão e queimava seu incenso de brasas para proteger a casa de espíritos do mal.
Além disso, mantinha todas as luzes da casa apagadas e um copo de alumínio com cerveja atrás da velha porta de madeira, num esforço de escondê-lo de nós, quando lhe fazíamos companhia.
O que era inútil, pois estávamos carecas de saber a respeito de seus vícios, porque presenciávamos seu ato diário de descer a rua a passos lentos, levando junto a si um bocapiu.
Retornando, minutos depois, de um bar não tão distante dali, mais conhecido pelo nome de Bar do Mundo Velho.
Tuvi comungava de um hábito bastante comum às idosas daquela rua, o de espalhar novidades, ou seja, fofocas sobre a vida alheia.
Quando descobria algo novo ou necessitava saber, subia a rua cambaleando como que lutando contra o próprio joelho.
Apoiava-se nos postes de iluminação que encontrava ao longo do caminho e, às vezes, olhava para trás, à procura de quem, no meio da garotada, proferia alguma pilhéria a respeito da fraqueza de seu corpo.
Porém, sem sucesso, logo seguia viagem até uma esquina próxima, onde a perdíamos de vista.
A verdade é que não se importava que fôssemos à sua casa, dizia que não gostava e tinha pavor mesmo era de "mininu ózadu".
Anos mais cedo até organizava caruru de Cosme e Damião, que oferecia à vizinhança e conhecidos seus.
Quando perguntávamos por quê ela nunca mais fizera a oferta, respondia que, por conta da idade avançada, não tinha mais vigor para tal atividade.
A última vez que perguntei sua idade, respondeu-me que tinha sessenta e seis anos.
Há pelo menos quatro anos que não a vejo. Tudo o que sei é que estava bastante debilitada e fraca porque não se alimentava corretamente, e, por isso, alguns parentes foram ao seu encontro e a levaram para outra localidade.
Desde que eu e Narituvi nos mudamos dali quase nada mudou. Exceto o nome da rua, que agora é o nome de uma figura política, um morador de uma rua vizinha, que em vida ficou conhecido pela vizinhança como o maior assassino de gatos da redondeza.
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Contos de Rouxinol
Short StoryColetânea de contos que versam sobre assuntos variados. A maioria deles foi escrita a partir das memórias de uma jovem adulta sobre acontecimentos referentes à infância/adolescência. Alguns, a minoria, são elucubrações da idade adulta.