Ainda me lembro da primeira vez que o vi. Uma noite. Era verão. Estava sentado à porta de nossa casa acompanhado de minha irmã. Vestia-se de um jeito despojado, bermuda e abadá, como de costume.
Eu, sentada no sofá da sala escura de nossa casa, o observava pelas suas costas, com a curiosidade de quem observa a um estranho.
A luz do poste de iluminação que ficava em frente à nossa casa era a única coisa que me possibilitou ter informações físicas do estranho.
Ele era jovem, na casa dos vinte ainda. E minha irmã estava longe dos dezoito anos. Mas, desde aquele dia, eu percebi que ele seria meu cunhado. Nessa época eu tinha uns sete anos de idade, talvez menos, mas não mais que isso.
No início do namoro com minha irmã, eu e o estranho não tínhamos intimidade. Acho até que não se importava comigo, já que eu era uma criança; embora desde sempre tivesse demonstrado preferência ao convívio com mulheres.
Um capacete nos aproximou. Ele trabalhava como mototaxista. Sempre que ia à nossa casa, deixava o capacete sob o tanque da moto, que estacionava à porta da casa.
A partir daí, ficou sendo minha "responsabilidade voluntária", todas as vezes que encontrava o capacete sob o tanque da moto, enquanto brincava na rua ou voltava da escola, levá-lo para dentro de casa.
Depois de fazer isso tantas vezes, meu desconforto com o estranho aos poucos foi perdendo força: já nos reconhecíamos afetivamente como cunhado e cunhada.
Era uma noite de inverno. Minha irmã gostava de assistir à televisão na sala. Nós sempre fomos muito próximas. Eu, minha irmã e o ex-estranho assistíamos à televisão no sofá da sala, enrolados em um único edredom.
À época, eu tinha uns dez anos de idade. Minha irmã assistia à televisão, hipnotizadamente. Eu me sentia entediada, mas não queria sair de perto dela. Lá fora, na rua, estava muito frio àquela hora para qualquer tentativa de se divertir. Portanto, fiquei.
Em algum momento, porque me sentia muito entediada, comecei a cochilar no sofá. Até que, por debaixo do edredom, senti dedos dos pés roçarem MEU segredo de ser fêmea, com movimentos bruscos.
Meu coração acelerou; minha boca era, agora, deserto aprisionado; minutos pareciam eternidade, como a sensação que sentíamos quando íamos tomar banho de rio aos domingos e brincávamos de segurar o fôlego com o rosto submerso n'água.
A cruel diferença é que eu gostava da brincadeira do rio, porque eu podia escolher entre participar da brincadeira ou não. A brincadeira dos dedos do pés me deixou assustada e confusa.
Eu não podia gritar porque eu não conseguia reagir. Eu estava paralisada, triste, machucada.
Eu sabia que a única forma de me livrar daquele incômodo seria sair dali, então, resolvi dizer para minha irmã que eu estava com sono e que, por isso, iria me deitar na cama. Assim, desejei boa noite à minha irmã e ao meu abusador.
Naquela noite custei a dormir. Naquela noite eu não sonhei bons sonhos. Não apenas naquela noite mas em várias outras, eu duvidei de mim mesma, mas nunca do meu abusador.
Naquela noite eu tive pena do meu corpo. Aquela noite deixou marcas, profundas. Aquela noite me fez prestar mais atenção em experiências que outras mulheres estão dispostas a compartilhar.
Aquela noite mudou a minha vida.
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Contos de Rouxinol
Historia CortaColetânea de contos que versam sobre assuntos variados. A maioria deles foi escrita a partir das memórias de uma jovem adulta sobre acontecimentos referentes à infância/adolescência. Alguns, a minoria, são elucubrações da idade adulta.